Em Setembro de 2011, o Governo decidiu não
nomear novos governadores civis. Em Novembro de 2011, a UNESCO aprovou a
Declaração Universal dos Arquivos, reforçando o valor cultural da
documentação histórica. Estes acontecimentos parecem distantes e
distintos, mas estão, de facto, estreitamente vinculados. Ao desmantelar
os governos civis, que funcionaram durante quase 200 anos nos 22
distritos do país, a documentação histórica não pode ser eliminada, nem
fechada. Se conservar os documentos produzidos nas múltiplas esferas do
Estado é essencial para salvaguardar a memória de um país, impedir o
acesso aos arquivos públicos é condicionar a liberdade de informação,
minando direitos de cidadania e valores democráticos.
Aparentemente,
nada havia a temer quanto ao destino da documentação produzida pelos
governos civis. Nos últimos anos, esse património estava a ser
incorporado nos respectivos arquivos distritais e estava acessível.
Mesmo documentos que estivessem nas instalações dos governos civis
podiam ser consultados. Era expectável que, com o desaparecimento dos
governos civis, toda esta documentação fosse reunida nos arquivos
distritais. Era este, precisamente, o sentido da Resolução 16/2012 da
Assembleia da República, de Dezembro de 2011. Salientava que a
Direcção-Geral de Arquivos (hoje Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e
das Bibliotecas) supervisionasse o processo de tratamento e
acondicionamento deste património histórico. Em Janeiro de 2012, foi
assinado um protocolo entre Ministério da Administração Interna (tutela
os governos civis), Direcção-Geral de Arquivos (autoridade nacional para
os arquivos) e Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade
(desde Agosto 2012 instituição de utilidade pública com sede no Porto),
para avaliar o património documental que ainda existia nos governos
civis. Mesmo que o teor do protocolo não tivesse sido divulgado,
investigadores e demais cidadãos podiam estar tranquilos: as
instituições funcionavam e, neste caso, Portugal até respeitava a
declaração da UNESCO, que subscreveu.
Nos primeiros meses de
2013, circularam várias informações relacionadas com a organização da
documentação dos governos civis - entre as quais, o caderno de encargos
do concurso público para seleccionar a entidade que trataria esses
fundos; a Portaria 153/2013 de 21 de Março, que entrou imediatamente em
vigor; o anúncio do Cepese para recrutar arquivistas para trabalhar nos
mesmos fundos. Entretanto, as "equipas" do Cepese percorriam os
distritos para verificar, arrumar e seleccionar documentação que
estivesse nas instalações dos ex-governos civis, agora ocupadas por
polícias e protecção civil. Talvez os juristas consigam esclarecer como
encaixar as peças deste puzzle. Enquanto historiadores, neste momento,
as nossas preocupações são outras.
Desde os inícios de 2013, os
investigadores têm sido surpreendidos com dificuldades de acesso aos
documentos que estão nas instalações dos ex-governos civis. As portas
estão, simplesmente, fechadas. Sem aviso prévio do MAI ou da
DGLAB-Secretaria de Estado da Cultura. Sem que nos arquivos distritais
consigam esclarecer o que se está a passar. Afinal, estarão as
instituições a cumprir a missão que lhes está atribuída? A consulta
destes documentos é essencial para cumprir objectivos e prazos de
projectos de investigação em curso. São financiados com fundos públicos,
através de Fundação para a Ciência e Tecnologia, envolvem dezenas de
investigadores e compromissos nacionais e internacionais.
Há três
anos fecharam a Biblioteca Nacional de Portugal, esquecendo-se das
centenas de investigadores e estudantes que a utilizam todos os dias.
Agora o erro repete-se. Mas o cenário é ainda pior. Não se percebe que
documentação vai ser preservada, onde vai ser guardada e quando pode ser
consultada.
A legislação vigente exige que qualquer proposta para
eliminar documentação histórica seja avaliada por uma comissão de
acompanhamento coordenada pela DGLAB. Essa comissão foi nomeada? Quais
os membros que a constituem? Que acção têm desenvolvido? Mais do que um
mero requisito legal, é absolutamente necessário que esta comissão
conheça o que representam os fundos documentais dos governos civis e
tome as decisões que contribuam para salvaguardar um património
histórico único e insubstituível.
Os governos civis foram
fundamentais para operacionalizar no território as decisões do poder
central. Durante muitas décadas, foram os olhos e as mãos do Estado,
actuando em áreas tão díspares como agricultura, saúde pública,
policiamento, emigração, assistência social, coordenação política ou
jogo. Os governadores civis articularam interesses locais, regionais e
centrais. Reuniram documentos que permitem compreender problemas,
actividades ou aspirações de grupos sociais que não estão representados
em outros arquivos. Eliminar esses testemunhos é contribuir para apagar
da História a larga maioria dos portugueses.
Todavia, apesar das
recomendações internacionais, não é claro que o caderno de encargos
deste concurso e os escassos meses previstos para executar a missão
garantam que toda a documentação com interesse histórico está a ser
devidamente tratada. Suspeita-se que há "caixas" e "colecções" que já
foram levadas. Para onde? Para o Cepese? Com a desagregação dos serviços
que estavam no governo civil a documentação histórica dos mesmos também
foi dispersada? Qual vai ser o destino das centenas de metros lineares
de correspondência e relatórios que decorrem das amplas competências dos
governos civis?
No caderno de encargos estabelece-se,
inequivocamente, que algumas séries são de conservação permanente, como
as relacionadas com eleições, alvarás ou concessão de passaportes. De
facto, esses documentos já começaram a chegar às instalações de alguns
arquivos distritais. Estão salvos. E o resto? Não há resposta oficial.
Apenas opiniões e preocupações. Algumas avançam, por exemplo, que só
serão conservados os livros que serviram de copiadores da
correspondência. O volume é menor e preserva-se a informação. Mas só
quem desconhece o que esta solução significa a poderá aplicar. Escritos
em folhas de papel de seda, muitas páginas já mal se conseguem ler e
nunca contêm todos os dados que constam mesmo de um simples ofício.
As
preocupações são tanto maiores quanto se adensa o mistério acerca do
local onde a documentação vai ficar guardada. De norte a sul do país,
fomos deparando com versões distintas. O MAI está a criar um arquivo
central dos governos civis? Ficará em Lisboa ou Évora? Vai ser
centralizada em instalações do Cepese, no Porto? Fica fechada nas
antigas instalações dos governos civis extintos? Vai ser transferida
para os respectivos arquivos distritais? Estes últimos seriam o destino
óbvio. Mas, estranhamente, não têm estado a ser vistos nem achados nas
decisões importantes. Na maior parte dos arquivos distritais faltam
funcionários. Alguns têm instalações exíguas sem capacidade para tudo o
que deve ser incorporado. Mas todos têm vasta experiência relacionada
com fundos dos governos civis e conhecem o valor de cada documento. Quem
se responsabilizará pelo trabalho arquivístico agora realizado, o
arquivo onde a documentação ficar guardada ou o Cepese, que se
desvinculará quando findar o contrato?
É incompreensível que em
fase avançada deste processo, a concluir em 2014, nem o MAI nem a DGLAB
esclareçam o que está a acontecer a este património histórico. Fecham-se
arquivos, sem data de reabertura e sem se saber o que vão
disponibilizar. Na verdade, isto não é inédito. Sempre que há
reestruturações dos serviços públicos, teme-se que os documentos
desapareçam. Publicar legislação ou subscrever declarações
internacionais pode tranquilizar algumas consciências, mas não bastam
para preservar o património público. A experiência de investigação tem
indicado que muitas centenas de toneladas de documentação histórica
devem ter acabado na reciclagem ou na fogueira, porque não aparecem em
nenhum arquivo conhecido. E, infelizmente, incúria e negligência não são
do passado.
Instituto de Ciências Sociais-Universidade de Lisboa; Instituto Universitário de Lisboa
Dois anos e dois milhões para arquivar a memória dos governos civis
Alexandra Prado Coelho
19/06/2013, Jornal Público
A extinção dos governos civis deixou toneladas de documentação à qual
é preciso dar um destino. O Governo vai fazê-lo em dois anos. Alguns
historiadores receiam que se percam documentos essenciais
Dois milhões de euros, dois anos, perto de 20 quilómetros de arquivos: o
Governo lançou um projecto para tratar (arquivar parte e eliminar
parte) dos fundos documentais dos governos civis, órgãos que foram
extintos em 2011. A empreitada foi atribuída, através de concurso
internacional, ao Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade
(Cepese), do Porto, dirigido pelo historiador Fernando de Sousa,
confirmou ao PÚBLICO o Ministério da Administração Interna, cuja
secretaria-geral é responsável por todo o processo.
O Cepese contratou 40 técnicos de arquivo em todo o país, e estes
começaram já a trabalhar em equipas de dois por cada Governo Civil, e
contando com o apoio de oito investigadores do centro. Os fundos
documentais a preservar deverão ser integrados nos arquivos distritais
locais, embora a situação tenha de ser avaliada caso a caso. Quando o
processo estiver concluído, em finais de 2014, será publicada uma obra
com a história dos governos civis desde 1835 até 2011.
Há, no entanto, historiadores que se mostram preocupados com a forma
como será feita a selecção dos documentos a eliminar. Dulce Freire, do
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, tem trabalhado
muito os arquivos dos governos civis e sublinha a enorme riqueza destes
que, diz, corre o risco de se perder neste processo.
"Os governos civis estabeleciam a relação entre as várias entidades do
poder central e as do poder local. Há uma correspondência quase diária,
que podia ser enviada pelo Ministério da Economia, pela Presidência do
Conselho, pela PIDE [a polícia política do Estado Novo]. Para um
funcionário ser admitido num cargo público tinha que haver uma
declaração da PIDE e esses processos passavam pelo Governo Civil. Havia
também um registo dos mendigos de cada concelho, para além da
documentação relativa a queixas, manifestações, abaixo-assinados",
descreve a investigadora, manifestando o receio de que "não seja
salvaguardada a preservação desta correspondência".
Silvestre Lacerda, responsável da Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos
e das Bibliotecas (DGLAB), explica que houve um trabalho preparatório
feito previamente ao lançamento do concurso público, e que "não pode
haver eliminação de documentação fora do âmbito das portarias" que
regulamentam esta questão (a Portaria 456/99 de 22 de Junho, e a 553/89
de 16 de Agosto de 1988). Em relação a tudo o que não estiver no âmbito
dessas portarias será feito um relatório de avaliação que será analisado
pela DGLAB - a eliminação só acontecerá com a autorização desta.
A mesma garantia é dada por Fernando de Sousa, presidente do Cepese:
"Este é um trabalho de história e de memória. Todos nós sabemos que a
História do país passa inevitavelmente pela documentação dos governos
civis." Só será eliminada a documentação que, de acordo com os critérios
das duas portarias, for considerada "sem valor histórico".
E há casos em que, mesmo que entre no critério das portarias como "a
eliminar", o próprio Cepese poderá levantar objecções. Dá um exemplo:
"Encontrámos num dos governos civis os processos dos passaportes das
pessoas que queriam emigrar. É uma colecção espantosa, com enorme valor
histórico, que enche uma sala enorme, e farei tudo para que não seja
destruída. Pela portaria poderia ser eliminada, mas não vou eliminá-la."
Uma das questões levantadas por Dulce Freire (e que é uma preocupação
também partilhada pelo historiador Fernando Rosas) é que alguns
documentos sejam retirados dos seus lugares originais para integrar
fundos temáticos - serem reunidos numa pasta que junte tudo o que diz
respeito a eleições, ou a manifestações, por exemplo. Esta
descontextualização prejudica muito o trabalho dos investigadores,
alertam. Mas também aqui Fernando de Sousa assegura que tal não vai
acontecer. "Vamos preservar os fundos documentais intactos. Não vamos
desmembrar as séries, pelo contrário, vamos integrar nos respectivos
fundos ou séries os documentos que estavam fora do sítio. O que
encontrámos em alguns governos civis foi autênticos armazéns de
documentação", por vezes muito desorganizada. O historiador não tem
dúvidas de que ao longo do tempo "foi destruída muito documentação",
embora isso tenha dependido muito "da sensibilidade de quem estava à
frente de cada Governo Civil".
O que pensava o povo?
No passado "cometeram-se verdadeiros crimes" na destruição de arquivos,
diz também Fernando Rosas, referindo-se ao país, e não em particular
aos arquivos dos governos civis. Até aos anos 90, quando "se começou a
estabelecer uma política nacional de arquivos, não havia critério
nenhum". Embora não conheça em detalhe o caso dos arquivos dos governos
civis, diz tratar-se de "uma tarefa gigantesca" e considera que "dois
anos não é um período razoável". Sublinha, além disso, a necessidade de
"ser o Estado a coordenar" o processo.
Fernando de Sousa reconhece que dois anos é um prazo "muito apertado,
mas vai ter de ser possível". Inicialmente o Cepese tinha previsto três
anos, mas ficou estabelecido que seriam dois, e mesmo assim os trabalhos
só começaram no final de Março deste ano e não em Janeiro. Agora, muito
vai depender do "ritmo de trabalho das equipas", mas o responsável
admite que, se for necessário, poderão ser contratados mais técnicos
para concluir a tempo.
Um processo como este levanta sempre questões relativamente ao que
preservar e o que eliminar - nesse ponto os historiadores ouvidos pelo
PÚBLICO são unânimes. Mas a partir daí as opiniões diferem. António
Costa Pinto, que investiga o período do Estado Novo, lembra que hoje em
dia "existe tecnologia que nos permite resolver o problema do espaço" e
que "há muito material sem importância histórica que pode ser eliminado,
guardando-se uma cópia digital, que é algo com um custo muito diminuto,
se comparado com o do armazenamento e tratamento". Fernando de Sousa
explica que em relação aos governos civis vai haver um grande trabalho
de digitalização, mas de documentos com valor histórico, e que passarão
depois a poder ser consultados com facilidade numa base de dados
pública. Os que forem eliminados se-lo-ão por não terem valor histórico e
por isso não serão digitalizados.
Dulce Freire interroga-se sobre se não estaremos a correr o risco de
destruir alguma coisa que hoje nos parece irrelevante, mas que possa ser
útil no futuro a algum investigador. "O século XX foi o período em que o
Estado foi mais alargado. Se eliminarmos documentação de forma
indiscriminada, estaremos a eliminar as provas materiais dessa mesma
dimensão do Estado." Outro grande risco que se corre é o de "no futuro
só termos a versão oficial da História, a das elites", e os arquivos dos
governos civis são particularmente importantes para se perceber "o que
pensava o povo".
O facto de um arquivo corresponder sempre a uma lógica de organização
qualquer é algo incontornável, lembra António Costa Pinto. "Num arquivo
existe sempre um critério de organização dos documentos de acordo com a
importância que têm para as funções do Estado, que não coincide
necessariamente com a visão dos historiadores e pode tornar a vida
destes particularmente difícil." Este é um problema da organização das
instituições, mais do que do tratamento dado posteriormente aos
arquivos.
Para o historiador Diogo Ramada Curto, a questão fundamental é que "não
existe modernização da máquina do Estado enquanto este estiver atulhado
em papéis", pelo que a política arquivística é fundamental. A
dificuldade é que o Estado tem "organismos extremamente competentes, mas
desprovidos de meios", pelo que, defende, é urgente "ter técnicos
formados, competentes e que façam parte da máquina do Estado" para
enfrentar esta tarefa gigantesca. Considera os arquivos dos governos
civis muito importantes "tanto para o século XX como para o XIX", mas
frisa que há uma quantidade imensa de arquivos por tratar por todo o
país e que é necessário pensar também no que fazer com eles.
O que permitiu avançar para o tratamento dos arquivos do governos civis
foi a decisão de extinguir estes organismos. A Secretaria-Geral do MAI
apresentou uma candidatura a fundos europeus e é por isso que neste
momento existem, especifica Fernando de Sousa, "um milhão e novecentos
mil euros para tudo, incluindo os recursos humanos, a digitalização, um
seminário e a publicação do livro" que encerrará o projecto no final de
2014.
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