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quarta-feira, abril 23, 2008

Para comemorar o 25 de Abril de 1974

Para comemorar o 25 de Abril de 1974 escolhi colocar neste blog as palavras de Jorge de Sena retiradas do seu texto "Não, Não Assino, Não Subscrevo...".
E porque Mário Viegas - dono da Liberdade e do sonho Dela - as deixou gravadas com o cunho da genialidade que era seu apanágio, aqui fica também a sua voz dizendo "Não, Não Assino, Não subscrevo...".
O texto é cru mas penso que ainda bastante actual nalguns pontos. Há muita coisa por cumprir apesar do muito que já foi feito.




Não, Não Assino, Não Subscrevo...


Não, não, não subscrevo, não assino
que a pouco e pouco tudo volte ao de antes,
como se golpes, contra-golpes, intentonas
(ou inventonas - armadilhas postas
da esquerda prá direita ou desta para aquela)
não fossem mais que preparar caminho
a parlamentos e governos que
irão secretamente pôr ramos de cravos
e não de rosas fatimosas mas de cravos
na tumba do profeta em Santa Comba,
enquanto pra salvar-se a inconomia
os empresários (ai que lindo termo,
com tudo o que de teatro nele soa)
irão voltar testas de ferro do
capitalismo que se usou de Portugal
para mão-de-obra barata dentro ou fora.
Tiveram todos culpa no chegar-se a isto:
infantilmente doentes de esquerdismo
e como sempre lendo nas cartilhas
que escritas fedem doutras realidades,
incompetentes competiram em
forçar revoluções, tomar poderes e tudo
numa ânsia de cadeiras, microfones,
a terra do vizinho, a casa dos ausentes,
e em moer do povo a paciência e os olhos
num exibir-se de redondas mesas
em televisas barbas de falácia imensa.
E todos eram povo e em nome del' falavam,
ou escreviam intragáveis prosas
em que o calão barato e as ideias caras
se misturavam sem clareza alguma
(no fim de contas estilo Estado Novo
apenas traduzido num calão de insulto
ao gosto e à inteligência dos ouvintes-povo).
Prendeu-se gente a todos os pretextos,
conforme o vento, a raiva ou a denúncia,
ou simplesmente (ó manes de outro tempo)
o abocanhar patriótico dos tachos.
Paralisou-se a vida do país no engano
de que os trabalhadores não devem trabalhar
senão em agitar-se em demandar salários
a que tinham direito mas sem que
houvesse produção com que pagá-los.
Até que um dia, à beira de uma guerra
civil (palavra cómica pois que
do lume os militares seriam quem tirava
para os civis a castanhinha assada),
tudo sumiu num aborto caricato
em que quase sem sangue ou risco de infecção
parteiras clandestinas apararam
no balde da cozinha um feto inexistente:
traindo-se uns aos outros ninguém tinha
(ó machos da porrada e do cacete)
realmente posto o membro na barriga
da pátria em perna aberta e lá deixado
semente que pegasse (o tempo todo
haviam-se exibido eufóricos de nus,
às Áfricas e às Europas de Oeste e Leste).
A isto se chegou. Foi criminoso?
Nem sequer isso, ou mais do que isso um guião
do filme que as direitas desejavam,
em que como num jogo de xadrez a esquerda
iria dando passo a passo as peças todas.
É tarde e não adianta que se diga ainda
(como antes já se disse) que o povo resistiu
a ser iluminado, esclarecido, e feito
a enfiar contente a roupa já talhada.
Se muita gente reagiu violenta
(com as direitas assoprando as brasas)
é porque as lutas intestinas (termo
extremamente adequado ao caso)
dos esquerdismos competindo o permitiram.
Também não vale a pena que se lave
a roupa suja em público: já houve
suficiente lavar que todavia
(curioso ponto) nunca mostrou inteira
quanta camisa à Salazar ou cueca de Caetano
usada foi por tanto entusiasta,
devotamente adepto de continuar ao sol
(há conversões honestas, sim, ai quantos santos
não foram antes grandes pecadores).
E que fazer agora? Choro e lágrimas?
Meter avestruzmente a cabeça na areia?
Pactuar na supremíssima conversa
de conciliar a casa lusitana,
com todos aos beijinhos e aos abraços?
Ir ao jantar de gala em que o Caetano,
o Spínola, o Vasco, o Otelo e os outros,
hão-de tocar seus copos de champanhe?
Ir já fazendo a mala para exílios?
Ou preparar uma bagagem mínima
para voltar a ser-se clandestino usando
a técnica do mártir (tão trágica porque
permite a demissão de agir-se à luz do mundo,
e de intervir directamente em tudo)?
Mas como é clandestina tanta gente
que toda a gente sabe quem já seja?
Só há uma saída: a confissão
(honesta e calculada) de que erraram todos,
e o esforço de mostrar ao povo (que
mais assustaram que educaram sempre)
quão tudo perde se vos perde a vós.
Revolução havia que fazer.
Conquistas há que não pode deixar-se
que se dissolvam no ar tecnocrata
do oportunismo à espreita de eleições.
Pode bem ser que a esquerda ainda as ganhe,
ou pode ser que as perca. Em qualquer caso,
que ao povo seja dito de uma vez
como nas suas mãos o seu destino está
e não no das sereias bem cantantes
(desde a mais alta antiguidade é conhecido
que essas senhoras são reaccionárias,
com profissão de atrair ao naufrágio
o navegante intrépido). Que a esquerda
nem grite, que está rouca, nem invente
as serenatas para que não tem jeito.
Mas firme avance, e reate os laços rotos
entre ela mesma e o povo (que não é
aqueles milhares de fiéis que se transportam
de camioneta de um lugar pró outro).
Democracia é isso: uma arte do diálogo
mesmo entre surdos. Socialismo a força
em que a democracia se realiza.
Há muito socialismo: a gente sabe,
e quem mais goste de uns que dos outros.
É tarde já para tratar do caso: agora
importa uma só coisa - defender
uma revolução que ainda não houve,
como as conquistas que chegou a haver
(mas ajustando-as francamente à lei
de uma equidade justa, rechaçando
o quanto de loucuras se incitaram
em nome de um poder que ninguém tinha).
E vamos ao que importa: refazer
um Portugal possível em que o povo
realmente mande sem que o só manejem,
e sem que a escravidão volte à socapa
entre a delícia de pagar uma hipoteca
da casa nunca nossa e o prazer
de ter um frigorífico e automóveis dois.
Ah, povo, povo, quanto te enganaram
sonhando os sonhos que desaprenderas!
E quanto te assustaram uns e outros,
com esses sonhos e com o medo deles!
E vós, políticos de ouro de lei ou borra,
guardai no bolso imagens de outras Franças,
ou de Germânias, Rússias, Cubas, outras Chinas,
ou de Estados Unidos que não crêem
que latinada hispânica mereça
mais que caudilhos com contas na Suiça.
Tomais nas vossas mãos o Portugal que tendes
tão dividido entre si mesmo. Adiante.
Com tacto e com firmeza. E com esperança.
E com um perdão que há que pedir ao povo.
E vós, ó militares, para o quartel
(sem que, no entanto, vos deixeis purgar
ao ponto de não serdes o que deveis ser:
garantes de uma ordem democrática
em que a direita não consiga nunca
ditar uma ordem sem democracia).
E tu, canção-mensagem, vai e diz
o que disseste a quem quiser ouvir-te.
E se os puristas da poesia te acusarem
de seres discursiva e não galante
em graças de invenção e de linguagem,
manda-os àquela parte. Não é tempo
para tratar de poéticas agora.


Santa Bárbara, Fevereiro 1976

(aniversário de uma tentativa heróica de conter uma noite que duraria décadas)

Sena, Jorge de, 40 anos de servidão, Lisboa, 1982, Moraes Editores - Círculo de Poesia, pps. 200 a 204

domingo, maio 20, 2007

Jorge de Sena


Amo-te muito, meu amor, e tanto
que, ao ter-te, amo-te mais, e mais ainda
depois de ter-te, meu amor. Não finda
com o próprio amor o amor do teu encanto.
Que encanto é o teu? Se continua enquanto
sofro a traição dos que, viscosos, prendem,
por uma paz da guerra a que se vendem,
a pura liberdade do meu canto,
um cântico da terra e do seu povo,
nesta invenção da humanidade inteira
que a cada instante há que inventar de novo,
tão quase é coisa ou sucessão que passa...
Que encanto é o teu? Deitado à tua beira,
sei que se rasga, eterno, o véu da Graça.
22/2/1954 - Jorge de Sena - As Evidências

terça-feira, janeiro 09, 2007

Jorge de Sena

CARTA AO JOVEM POETA

Meu caro jovem poeta

Pedem-me que lhe escreva, como se o amigo tivesse começado por enviar-me poemas seus, solicitando a minha opinião. Pedem-me também que o considere o jovem poeta ideal, aquele que imaginamos o certo para escutar-nos. Pedem-me enfim — embora isso não seja dito — que eu me suponha o Rilke escrevendo a um jovem que não seja o medíocre a quem ele dizia tão belas coisas. Creio que é pedir demasiado.

De um modo geral, os poetas de reputação firmada, ou que se julgam ou são julgados tais (ninguém tem a sua reputação firmada em literatura, nem depois de séculos de ninguém nos ler e de todos repetirem que somos génios, a não ser que isso importe aos interesses ou desinteresses de alguns professores e críticos), costumam receber poemas ou poetas jovens que solicitam opinião. O poeta "velho" toma tal facto como uma vénia, um reconhecimento, que ele teme perder, por parte da juventude. Mas o que o poeta jovem na verdade procura não é bem uma opinião de alguém mais experiente (qual o poeta jovem que, no fundo, se não sente superior a qualquer mesmo admirado poeta "velho"?), mas sim uma oportunidade de entrar, pela mão de alguém, naquele mundo maravilhoso dos poetas vivos, da poesia pessoalmente, etc., que ele descobrirá ser um sórdido e torpe mundo, inteiramente igual, se não pior (porque se sustenta de uma importância que realmente não tem), àquele, tão comum e familiar, que, nas suas frustrações juvenis, o poeta jovem julga que detesta. Instintivamente, ele sabe que, se não pedir a bênção de alguém, dificilmente fará sem amarguras o seu caminho. Porque a vida literária é uma maçonaria como qualquer outra, onde é escusado imaginar-se que alguém entra forçando as portas. Tudo, na vida, funciona por camarilhas que oferecem a seus membros a tranquilidade de se imaginarem importantes ou, mais ainda, a ilusão de que estão vivos.

Se um conselho, ab initio, se pode e deve dar a um jovem poeta, é o de que perca a inocência juvenil, se venda, se prostitua (o próprio corpo, se necessário for, porque às vezes lho cobiçarão), se dedique à adulação da mediocridade triunfante, ouça respeitosamente as opiniões dos críticos mais influentes porque mais cretinos, e receba em troca a paz triunfal dos sucessos mundanos e literários. Se, depois disto, puder continuar a ser o poeta que havia nele ou que ele sonhava que seria, é um outro caso — mas, por esse segredo, poderá estar certo que ninguém perguntará. Forçar as portas, com um livro, dois livros, uma crítica, duas, muitas, dirigidas contra a infecta pesporrância dos estabelecidos; pedir justiça, em vez de amabilidade; exigir inteligência, em lugar de um comércio de retribuições; procurar a camaradagem limpa, e não aceitar os gestos dúbios; enfim, tudo o que diz respeito à dignidade humana e da poesia, em vez da complacência com tudo e todos — não rende. Nem em vida, nem na morte. Porque as histórias literárias, com raras excepções arquivo de tudo o que a mediocridade alguma vez disse sem ter lido, guardarão longamente, em benefício da posteridade, todo o veneno que os contemporâneos lançaram sobre aquele que, por pretender ser uma pessoa, e um poeta, lhes ameaçava, só por isso, a segurança. Ao jovem poeta, é preciso dizer-se que desconfie do grande poeta vivo que receba consagração geral. Se a recebe, é porque algo está podre naquele reino da Dinamarca.

Quanto aos seus poemas, meu caro poeta, como V. é um poeta inexistente, cujos poemas são imaginários, e como eu não acredito na Poesia, com maiúscula, preexistente aos poemas em que ela exista, que lhe direi? Eu não faço ideia alguma da espécie de poeta que o meu amigo é. Cultiva as imagens e as metáforas, no seu anseio juvenil de seguir uma das modas, e de parecer que diz coisas extremamente profundas, sem na verdade dizer nada? Ou prefere as palavras despedaçadas, uma letra para cada canto, ou os graciosos joguinhos do pata, peta, pita, pota, etc? Isso também se usa muito, e granjeia grande prestígio. Acaso faz ou não faz sonetos, pelo melhor modelo (que é o que funda a tradição parnasiana, um pouco erótica, para a masturbação em família, com os ornamentos do mais safado mas sempre brilhante gongorismo)? Ou está preocupado com os destinos do mundo ou os da pátria, e confunde-os com aquela inacabável tradição que manda os poetas imitar os Nerudas & C.a? Ou a sua poesia é extremamente vaga e diáfana, confortavelmente distante de qualquer afirmação excessiva, neste duvidoso mundo? Ou, pelo contrário, é amplamente discursiva, transbordante de riqueza (termo este muito usado pelos críticos em petição de matéria substantiva)? Como vê, meu amigo, não posso mais que aventar hipóteses, segundo as linhagens mais ilustres do momento. Oh, mas esquecia-me de outra: acaso será herdeiro do surrealismo, com alguma tintura de beatniks e de psiquedélicos da Califórnia e arredores, e compraz-se em insultar o mundo, insinuando perversões horríveis, e despejando sobre ele os palavrões sagrados, por extenso? Não? Não?! Então, meu caro amigo, das duas uma: ou a sua poesia é um regresso aos velhos padrões arcádico-românticos, e sem dúvida terá êxito ainda nos salões de uma profunda província, ou, na verdade, o senhor é um poeta. E, sendo poeta, é-o de tal modo, que a sua poesia não pode ser reconhecida, nem o senhor tem o direito de esperar que ela o seja. Daqui a vinte ou trinta anos, quando estiver alquebrado, exausto, esgotado, descrente da poesia a que sacrificou a sua vida e a de quantos tiveram a desgraça de depender de si, talvez então comecem a reconhecer que o senhor existe. Claro que muito a contragosto, muito de má vontade, com muita reticência... Eles, meu caro, serão sempre os génios; o senhor será também um génio, um génio imenso, um génio enorme, mas um génio mas, um génio adversativo. E pode ter a certeza de que assim ficará nas histórias literárias: sempre com um mas tanto maior, quanto pior seja o génio que não possam negar-lhe.

A poesia, querido amigo, não é o que pensa, não. Ela não lhe pode trazer, se verdadeira for, essa satisfação que transparece da sua tão trémula confiança em si mesmo. Isso, se me permite que lhe diga, é uma ilusão da sua juventude. A poesia não é essa alegria de fazer alguma coisa que nem todos os outros fazem, e que eles aliás desprezam. Não é também esse prazer enganoso de que possui com palavras o amor que lhe escapa, as coisas que não consegue, as ideias que perpassam na sua cabeça, antes ou depois da solidão. A poesia, caríssimo, é a solidão mesma: não a que vivemos, não a que sofremos, não a que possamos imaginar, mas a solidão em si, vivendo-se à sua custa. Já pensou no que isso é? Por ela, o senhor será egoísta, sendo altruísta; será mesquinho, sendo nobre; trairá tudo, para ser fiel a si mesmo. Por ela, o senhor ficará completamente só. E, quando, de horror, penetrar lá onde supõe que o "si mesmo" está para lhe fazer companhia, verificará, em pânico, a que ponto ele não existe, ou já não existe, ou nunca existiu senão como uma miragem, ou existiu, sim, mas também ele o senhor vendeu à poesia, a isso que não tem qualquer realidade senão como abstracção do que o senhor pensa e escreve, e que, por sua vez, é já uma abstracção do que o senhor viveu ou não. Medite um pouco no significado terrível deste ou não, e nunca mais escreva versos ou prosa poética, ou lá que é que escreve para se julgar poeta.

Se for um poeta de verdade, meu caro, o melhor é com efeito não escrevê-los, e deixar de o ser. Porque a única alternativa é pavorosa: ou prostituta, dando à cauda, entre as madamas; ou monstro solitário, rangendo os dentes na treva, ainda quando só tenha visões de anjos tocando flauta, numa apoteose (ou epifania, que é mais elegante, e era o que o Joyce dizia). Guarde os versos, rasgue os versos, esmague os versos, arrase com eles. É isso o que pretende: ranger os dentes, mesmo postiços, pelo resto da vida? Se é, meu caro amigo, então não mande os seus versos a ninguém, não peça opiniões que ninguém pode dar-lhe, não espere conselhos de uma experiência que é pessoal e intransmissível, não solicite uma atenção que não haverá quem lha conceda. A menos que, para fim de festa, pretenda tirar, para seu uso, a contraprova de que a humanidade como humanidade, os povos como povos, as nações como nações, as classes como classes, os grupos como grupos são sempre colecções mais ou menos numerosas de infames bestas. Ou a contraprova de que, individualmente, ninguém vale para além do orgasmo, ou do olhar de simpatia, ou do gesto de ternura. Ainda quando sejam poetas, meu caro, ainda quando o sejam.

Não lhe estou dizendo que não publique os versos, uma vez que tenha ânimo e força para aguentar-se no equilíbrio instável entre a condição de prostituta e a condição de mons­tro. Na verdade, se a tentação que sente é irresistível de escrevê-los, se não procura a fama ou o proveito, se a dor de escrevê-los só se cura com a dor maior de escrever outros, se se sente vazio e triste quando eles estão escritos, e sofre de sentir-se vazio quando vai escrevê-los, e não sabe nunca o que vai escrever, e acha horrível tudo o que escreveu mas não é capaz de destruí-lo, então publique-os, publique-os sempre. E mande-os a toda a gente. Toda. Mas não peça opiniões ou conselhos a ninguém. Deixe que eles todos fiquem amarrados, para sempre, à culpa de o não terem lido, de o não terem sentido, de o não terem admirado. Dê-lhes, se a glória tiver de ser sua, o castigo da sua glória, implacavelmente. No fim das contas, lá onde nas trevas os dentes lhe rangem furiosamente, que isto lhe sirva de alguma consolação: todos eles passarão, como os ratos passam. Mas alguma coisa não passará, por mais que na morte, no silêncio, na paz dos túmulos ou das histórias literárias, se desfaçam em tranquila cinza: essa culpa que, dentro de alguns anos, será tudo o que se recordará deles todos tão poetas, tão aplaudidos, tão queridos das damas e/ou dos efebos, e tão estudados, tão bibliografados, tão comemorados, tão tudo o que lhe terão recusado entre dois abraços e dois sorrisos. Outros ratos virão — mas a culpa fica. Bem sei, meu caro, que não adianta muito, sobretudo se a gente não acredita na imortalidade, ou mesmo que acredite. Consola porém alguma coisa. E dá coragem à gente até ao poema seguinte. É quanto basta. Ou tem de bastar, porque não há mais nada.

Sempre seu (que o manda para o Inferno que é nossa província)

Jorge de Sena

sexta-feira, dezembro 08, 2006

"CARTA A MEUS FILHOS SOBRE OS FUZILAMENTOS DE GOYA"

Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
multas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.

Jorge de Sena

terça-feira, outubro 03, 2006

(Foto: "As Vampiras Lésbicas de Sodoma" - Teatro-Estúdio Mário Viegas)

Poema intitulado "VAMPIRO" de Jorge de Sena

Ouço os gatos brincar. Saltam, perseguem-se.
Da rua, cuja noite um automóvel corta,
Chegaram-me risos, vozear distante.
Mais longe some-se o rodar de um eléctrico.
Tremem-me as mãos só de lembrar que pude
abandonar-te ao teu desejo agudo,
quando tão junto ao meu o contiveste,
julgando que submisso eu te seguia.
Tremem-me as mãos, as coisas me são estranhas,
algo me agarra pela nuca e me arrebata
por sibilantes portas sucessivas
de que ouço os gonzos respirar-me a vida.
Os gatos brincam? Outro carro passa?
Outros regressam? Viram-te? Tiveram-te?
Sou eu quem está dentro de ti com eles?
Num vácuo de escamas luzidias,
o sono plumbeo me rodeia, ataca
por ondas silenciosas e concentricas.
Como na morte dormirei, e digerindo
o sangue puro que te não bebi.

9/12/1950

terça-feira, abril 25, 2006

25 DE ABRIL... dia da Liberdade. Dia maior de Portugal. Neste dia todos andam numa felicidade disfarçada. 364 dias a dizerem mal de Portugal, dos Portugueses, do estado da Nação... e com razão. Um dia, apenas um - 25 de Abril - em que se sorri, fala-se da liberdade e das conquistas feitas! Mas que conquistas feitas? O Desemprego brutal? A Inflação galopante? Os Políticos corruptos? Uma Escola que desmascara o analfabetismo em ilitracia? A pseudo liberdade de pensamento ou de expressão? Quem acredita?
Eu festejo o 25 de Abril. Reconheço-lhe a maior importância para a nossa história recente... Não me imagino sem essa data. Mas tenho pena que depois tenha vindo o 26 de Abril e tudo tenho voltado ao mesmo... a mesma servidão, mascarada; o mesmo paleio, mascarado; os mesmos "barões", mascarados; o mesmo Povo, mascarado; a mesma fome, mascarada; a mesma inércia, mascarada; a mesma polícia, mascarada; os mesmos jornais, mascarados.
E para reflectir aqui fica, de novo, o "Não, Não, Não Subscrevo..." de Jorge de Sena... para ler e pensar se, realmente, o 25 de Abril não ficou encerrado, nesse dia, sobre si mesmo.

terça-feira, agosto 02, 2005

Jorge de Sena

NO PAÍS DOS SACANAS
Que adianta dizer-se que é um país de sacanas?
Todos o são, mesmo os melhores, às suas horas,
e todos estão contentes de se saberem sacanas.
Não há mesmo melhor do que uma sacanice
para fazer funcionar fraternamente
a humidade da próstata ou das glândulas lacrimais,
para além das rivalidades, invejas e mesquinharias
em que tanto se dividem e afinal se irmanam.
Dizer-se que é de heróis e santos o país,
a ver se se convencem e puxam para cima as calças?
Para quê, se toda a gente sabe que só asnos,
ingénuos e sacaneados é foram disso?
Não, o melhor seria aguentar, fazendo que se ignora.
Mas claro que logo todos pensam que isto é o cúmulo da sacanice,
porque no país dos sacanas, ninguém pode entender
que a nobreza, a dignidade, a independência, a
justiça, a bondade, etc., etc., sejam
outra coisa que não patifaria de sacanas refinados
a um ponto que os mais não são capazes de atingir.
No país dos sacanas, ser sacana e meio?
Não, que toda a gente já é pelo menos dois.
Como ser-se então nesse país? Não ser-se?
Ser ou não ser, eis a questão, dir-se-ia.
Mas isso foi no teatro, e o gajo morreu na mesma.
10/10/73

domingo, julho 24, 2005

Jorge de Sena


Não, Não, Não Subscrevo,...
Não, não, não subscrevo, não assino
que a pouco e pouco tudo volte ao de antes,
como se golpes, contra-golpes, intentonas
(ou inventonas - armadilhas postas
da esquerda prá direita ou desta para aquela)
não fossem mais que preparar caminho
a parlamentos e governos que
irão secretamente pôr ramos de cravos
e não de rosas fatimosas mas de cravos
na tumba do profeta em Santa Comba,
enquanto pra salvar-se a inconomia
os empresários (ai que lindo termo,
com tudo o que de teatro nele soa)
irão voltar testas de ferro do
capitalismo que se usou de Portugal
para mão-de-obra barata dentro ou fora.
Tiveram todos culpa no chegar-se a isto:
infantilmente doentes de esquerdismo
e como sempre lendo nas cartilhas
que escritas fedem doutras realidades,
incompetentes competiram em
forçar revoluções, tomar poderes e tudo
numa ânsia de cadeiras, microfones,
a terra do vizinho, a casa dos ausentes,
e em moer do povo a paciência e os olhos
num exibir-se de redondas mesas
em televisas barbas de falácia imensa.
E todos eram povo e em nome del' falavam,
ou escreviam intragáveis prosas
em que o calão barato e as ideias caras
se misturavam sem clareza alguma
(no fim de contas estilo Estado Novo
apenas traduzido num calão de insulto
ao gosto e à inteligência dos ouvintes-povo).
Prendeu-se gente a todos os pretextos,
conforme o vento, a raiva ou a denúncia,
ou simplesmente (ó manes de outro tempo)
o abocanhar patriótico dos tachos.
Paralisou-se a vida do país no engano
de que os trabalhadores não devem trabalhar
senão em agitar-se em demandar salários
a que tinham direito mas sem que
houvesse produção com que pagá-los.
Até que um dia, à beira de uma guerra
civil (palavra cómica pois que
do lume os militares seriam quem tirava
para os civis a castanhinha assada),
tudo sumiu num aborto caricato
em que quase sem sangue ou risco de infecção
parteiras clandestinas apararam
no balde da cozinha um feto inexistente:
traindo-se uns aos outros ninguém tinha
(ó machos da porrada e do cacete)
realmente posto o membro na barriga
da pátria em perna aberta e lá deixado
semente que pegasse (o tempo todo
haviam-se exibido eufóricos de nus,
às Áfricas e às Europas de Oeste e Leste).
A isto se chegou. Foi criminoso?
Nem sequer isso, ou mais do que isso um guião
do filme que as direitas desejavam,
em que como num jogo de xadrez a esquerda
iria dando passo a passo as peças todas.
É tarde e não adianta que se diga ainda
(como antes já se disse) que o povo resistiu
a ser iluminado, esclarecido, e feito
a enfiar contente a roupa já talhada.
Se muita gente reagiu violenta
(com as direitas assoprando as brasas)
é porque as lutas intestinas (termo
extremamente adequado ao caso)
dos esquerdismos competindo o permitiram.
Também não vale a pena que se lave
a roupa suja em público: já houve
suficiente lavar que todavia
(curioso ponto) nunca mostrou inteira
quanta camisa à Salazar ou cueca de Caetano
usada foi por tanto entusiasta,
devotamente adepto de continuar ao sol
(há conversões honestas, sim, ai quantos santos
não foram antes grandes pecadores).
E que fazer agora? Choro e lágrimas?
Meter avestruzmente a cabeça na areia?
Pactuar na supremíssima conversa
de conciliar a casa lusitana,
com todos aos beijinhos e aos abraços?
Ir ao jantar de gala em que o Caetano,
o Spínola, o Vasco, o Otelo e os outros,
hão-de tocar seus copos de champanhe?
Ir já fazendo a mala para exílios?
Ou preparar uma bagagem mínima
para voltar a ser-se clandestino usando
a técnica do mártir (tão trágica porque
permite a demissão de agir-se à luz do mundo,
e de intervir directamente em tudo)?
Mas como é clandestina tanta gente
que toda a gente sabe quem já seja?
Só há uma saída: a confissão
(honesta e calculada) de que erraram todos,
e o esforço de mostrar ao povo (que
mais assustaram que educaram sempre)
quão tudo perde se vos perde a vós.
Revolução havia que fazer.
Conquistas há que não pode deixar-se
que se dissolvam no ar tecnocrata
do oportunismo à espreita de eleições.
Pode bem ser que a esquerda ainda as ganhe,
ou pode ser que as perca. Em qualquer caso,
que ao povo seja dito de uma vez
como nas suas mãos o seu destino está
e não no das sereias bem cantantes
(desde a mais alta antiguidade é conhecido
que essas senhoras são reaccionárias,
com profissão de atrair ao naufrágio
o navegante intrépido). Que a esquerda
nem grite, que está rouca, nem invente
as serenatas para que não tem jeito.
Mas firme avance, e reate os laços rotos
entre ela mesma e o povo (que não é
aqueles milhares de fiéis que se transportam
de camioneta de um lugar pró outro).
Democracia é isso: uma arte do diálogo
mesmo entre surdos. Socialismo a força
em que a democracia se realiza.
Há muito socialismo: a gente sabe,
e quem mais goste de uns que dos outros.
É tarde já para tratar do caso: agora
importa uma só coisa - defender
uma revolução que ainda não houve,
como as conquistas que chegou a haver
(mas ajustando-as francamente à lei
de uma equidade justa, rechaçando
o quanto de loucuras se incitaram
em nome de um poder que ninguém tinha).
E vamos ao que importa: refazer
um Portugal possível em que o povo
realmente mande sem que o só manejem,
e sem que a escravidão volte à socapa
entre a delícia de pagar uma hipoteca
da casa nunca nossa e o prazer
de ter um frigorífico e automóveis dois.
Ah, povo, povo, quanto te enganaram
sonhando os sonhos que desaprenderas!
E quanto te assustaram uns e outros,
com esses sonhos e com o medo deles!
E vós, políticos de ouro de lei ou borra,
guardai no bolso imagens de outras Franças,
ou de Germânias, Rússias, Cubas, outras Chinas,
ou de Estados Unidos que não crêem
que latinada hispânica mereça
mais que caudilhos com contas na Suiça.
Tomais nas vossas mãos o Portugal que tendes
tão dividido entre si mesmo. Adiante.
Com tacto e com firmeza. E com esperança.
E com um perdão que há que pedir ao povo.
E vós, ó militares, para o quartel
(sem que, no entanto, vos deixeis purgar
ao ponto de não serdes o que deveis ser:
garantes de uma ordem democrática
em que a direita não consiga nunca
ditar uma ordem sem democracia).
E tu, canção-mensagem, vai e diz
o que disseste a quem quiser ouvir-te.
E se os puristas da poesia te acusarem
de seres discursiva e não galante
em graças de invenção e de linguagem,
manda-os àquela parte. Não é tempo
para tratar de poéticas agora.
Santa Bárbara, Fevereiro 1976
(aniversário de uma tentativa heróica de conter uma noite que duraria décadas)
Sena, Jorge de, 40 anos de servidão, Lisboa, 1982, Moraes Editores - Círculo de Poesia, pps. 200 a 204

quinta-feira, março 03, 2005

JORGE DE SENA - CARTA A MEUS FILHOS SOBRE OS FUZILAMENTOS DE GOYA

Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya
Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso. É possível, porque tudo é possível, que ele seja aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo, onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido, conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer, o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto o que vos interesse para viver. Tudo é possível, ainda quando lutemos, como devemos lutar, por quanto nos pareça a liberdade e a justiça, ou mais que qualquer delas uma fiel dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade não tem conta o número dos que pensaram assim, amaram o seu semelhante no que ele tinha de único, de insólito, de livre, de diferente, foram sacrificados, torturados, espancados, entregues hipocritamente à secular justiça, para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue». Por serem fiéis a um deus, a um pensamento, a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas à fome irrespondível que lhes roía as entranhas, foram estripados, esfolados, queimados, gaseados, e os seu corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido, ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras por serem de uma classe, expiaram todos os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência de haver cometido. Mas também aconteceu e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer, aniquilando mansamente, delicadamente, por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror, foi uma coisa, entre mil, acontecido em Espanha há mais de um século e que por violenta e injusta ofendeu o coração de um pintor chamado Goya, que tinha um coração muito grande, cheio de fúria e de amor. Mas isto nada é, meus filhos. Apenas um episódio, um episódio breve, nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis) de ferro e de suor e sangue e algum sémen a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la. É isto que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto não é senão essa alegria que vem de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém está menos vivo ou sofre ou morre para que um só de vós resista um pouco mais à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereís serenamente, sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição, e sobretudo sem desapego ou indiferença, ardentemente espero. Tanto sangue, tanta dor, tanta angústia, um dia - mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga - não hão-de ser em vão. Confesso que muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos de opressão e crueldade, hesito por momentos e uma amargura me submerge inconsolável. Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam, quem ressuscita esses milhões, quem restitui não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado? Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes aquele instante que não viveram, aquele objecto que não fruíram, aquele gesto de amor, que fariam «amanhã».
E por isso, o mesmo mundo que criemos nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa que não é nossa, que nos é cedida para a guardarmos respeitosamente em memória do sangue que nos corre nas veias, da nossa carne que foi outra, do amor que outros não amaram porque lho roubaram.

quarta-feira, março 02, 2005

JORGE DE SENA - PORTUGAL

A Portugal

Esta é a ditosa pátria minha amada. Não.
Nem é ditosa, porque o não merece.
Nem minha amada, porque é só madrasta.
Nem pátria minha, porque eu não mereço
A pouca sorte de nascido nela.

Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta
quanto esse arroto de passadas glórias.
Amigos meus mais caros tenho nela,
saudosamente nela, mas amigos são
por serem meus amigos, e mais nada.

Torpe dejecto de romano império;
babugem de invasões; salsugem porca
de esgoto atlântico; irrisória face
de lama, de cobiça, e de vileza,
de mesquinhez, de fatua ignorância;
terra de escravos, cu pró ar ouvindo
ranger no nevoeiro a nau do Encoberto;
terra de funcionários e de prostitutas,
devotos todos do milagre, castos
nas horas vagas de doença oculta;
terra de heróis a peso de ouro e sangue,
e santos com balcão de secos e molhados
no fundo da virtude; terra triste
à luz do sol calada, arrebicada, pulha,
cheia de afáveis para os estrangeiros
que deixam moedas e transportam pulgas,
oh pulgas lusitanas, pela Europa;
terra de monumentos em que o povo
assina a merda o seu anonimato;
terra-museu em que se vive ainda,
com porcos pela rua, em casas celtiberas;
terra de poetas tão sentimentais
que o cheiro de um sovaco os põe em transe;
terra de pedras esburgadas, secas
como esses sentimentos de oito séculos
de roubos e patrões, barões ou condes;
ó terra de ninguém, ninguém, ninguém:
eu te pertenço. És cabra, és badalhoca,
és mais que cachorra pelo cio,
és peste e fome e guerra e dor de coração.
Eu te pertenço mas seres minha, não

Jorge de Sena