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terça-feira, outubro 30, 2012

Almada Negreiros

 
Uma grande frase de Almada Negreiros, "graffitada" numa parede em Lisboa. Esta frase pertence ao brilhante manifesto "A Cena do Ódio" que, tal como o Manifesto Anti-Dantas, foi lido por Mário Viegas e se encontra na integre no youtube.

sexta-feira, agosto 12, 2011

A Cena do Ódio, de Almada Negreiros, por Mário Viegas

A Cena do Ódio - José de Almada Negreiros, por Mário Viegas
A Álvaro de Campos a dedicação intensa de todos os meus avatares. Foi escrito durante os três dias e as três noites que durou a revolução de 14 de Maio de 1915
Ergo-Me Pederasta apupado d'imbecis,
Divinizo-Me Meretriz, ex-líbris do Pecado,
e odeio tudo o que não Me é por Me rirem o Eu!
Satanizo-Me Tara na Vara de Moisés!
O castigo das serpentes é-Me riso nos dentes,
Inferno a arder o Meu Cantar!
Sou Vermêlho-Niagara dos sexos escancarados nos chicotes
dos cossácos!
Sou Pan-Demónio-Trifauce enfermiço de Gula!
Sou Génio de Zaratrusta em Taças de Maré-Alta!
Sou Raiva de Medusa e Danação do Sol!
Ladram-Me a Vida por vivê-La
e só Me deram Uma!
Hão-de lati-La por sina!
Agora quero vivê-La!
Hei-de Poeta cantá-La em Gala sonora e dina
Hei-de Glória desanuviá-La!
Hei-de Guindaste içá-La Esfinge
da Vala pedestre onde Me querem rir!
Hei-de trovão-clarim levá-La Luz
às Almas-Noites do Jardim das Lágrimas!
Hei-de bombo rufá-La pompa de Pompeia
nos Funerais de Mim!
Hei-de Alfange-Mahoma
cantar Sodoma na Voz de Nero!
Hei-de ser Fuas sem Virgem do Milagre,
hei-de ser galope opiado e doido, opiado e doido...
Hei-d' Átila, hei-de Nero, hei-de Eu,
cantar Atila, cantar Nero, cantar Eu!
Sou Narciso do Meu Ódio!
- O Meu ódio é Lanterna de Diógenes,
é cegueira de Diógenes,
é cegueira da Lanterna!
(O Meu Ódio tem tronos d' Herodes,
histerismos de Cleópatra, perversões de Catarina!)
O Meu ódio é Dilúvio Universal sem Arcas de Noé, só
Dilúvio Universal!
e mais Universal ainda:
Sempre a crescer, sempre a subir...
até apagar o Sol!
Sou trono de Abandono, mal-fadado,
nas iras dos Bárbaros meus Avós.
Oiço ainda da Berlinda d'Eu ser sina
gemidos vencidos de fracos,
ruídos famintos de saque,
ais distantes de Maldição eterna em Voz antiga!
Sou ruínas rasas, inocentes
como as asas de rapinas afogadas.
Sou relíquias de mártires impotentes
sequestradas em antros do Vício.
Sou clausura de Santa professa,
Mãe exilada do Mal, Hóstia d'Angústia no Claustro,
freira demente e donzela,
virtude sozinha da cela
em penitência do sexo!
Sou rasto espezinhado d'Invasores
que cruzaram o meu sangue, desvirgando-o.
Sou a Raiva atávica dos Távoras,
o sangue bastardo de Nero,
o ódio do último instante
do Condenado inocente!
A podenga do Limbo mordeu raivosa
as pernas nuas da minh'Alma sem baptismo...
Ah! que eu sinto, claramente,
que nasci de uma praga de ciúmes!
Eu sou as sete pragas sobre o Nilo e a Alma dos Bórgias a
penar!
Tu, que te dizes Homem!
Tu, que te alfaiatas em modas
e fazes cartazes dos fatos que vestesp'ra que se não vejam as nódoas de baixo!
Tu, qu'inventaste as Ciências e as Filosofias,
as Políticas, as Artes e as Leis,
e outros quebra-cabeças de sala
e outros dramas de grande espectáculo
Tu, que aperfeiçoas sabiamente a arte de matar.
Tu, que descobriste o cabo da Boa-Esperança
e o Caminho Marítimo da índia
e as duas Grandes Américas,
e que levaste a chatice a estas Terras
e que trouxeste de lá mais gente p'raqui
e qu'inda por cima cantaste estes Feitos...
Tu, qu'inventaste a chatice e o balão,
e que farto de te chateares no chão
te foste chatear no ar,
e qu'inda foste inventar submarinos
p'ra te chateares também por debaixo d'água,
Tu, que tens a mania das Invenções e das Descobertas
e que nunca descobriste que eras bruto,
e que nunca inventaste a maneira de o não seres
Tu consegues ser cada vez mais besta
e a este progresso chamas Civilização!
Vai vivendo a bestialidade na Noite dos meus olhos,
vai inchando a tua ambição-toiro
'té que a barriga te rebente rã.
Serei Vitória um dia -Hegemonia de Mim!
e tu nem derrota, nem morto, nem nada.
O Século-dos-Séculos virá um dia
e a burguesia será escravatura
se for capaz de sair de Cavalgadura!
Hei-de, entretanto, gastar a garganta
a insultar-te, ó besta!
Hei-de morder-te a ponta do rabo
e por-te as mãos no chão, no seu lugar!
Ahi! Saltimbanco-bando de bandoleiros nefastos!
Quadrilheiros contrabandistas da Imbecilidade!
Ahi! Espelho-aleijão do Sentimento,
macaco-intruja do Alma-realejo!
Ahi! macrelle da Ignorância!
Silenceur do Génio-Tempestade!
Spleen da Indigestão!
Ahi! meia-tigela, travão das Ascensões!
Ahi! povo judeu dos Cristos mais que Cristo!
Ó burguesia! Ó ideal com i pequeno
Ó ideal ricócó dos Mendes e Possidonios
Ó cofre d'indigentes
Cuja personalidade é a moral de todos!
Ó geral da mediocridade!
Ó claque ignóbil do Vulgar, protagonista do normal!
Ó Catitismo das lindezas d'estalo!
Ahi! lucro do fácil,
cartilha-cabotina dos limitados, dos restringidos!
Ai! dique-impecilho do Canal da Luz!
Ó coito d'impotentes
a corar ao sol no riacho da Estupidez!
Ahi! Zero-barómetro da Convicção!
bitola dos chega, dos basta, dos não quero mais!
Ahi! Plebeísmo Aristocratizado no preço do panamá!
erudição de calça de xadrez!
competência de relógio d'oiro
e correntes com suores do Brasil,
e berloques de cornos de búfalo!
E eu vivo aqui desterrado e Job
da Vida-gémea d'Eu ser feliz!
E eu vivo aqui sepultado vivo
na Verdade de nunca ser Eu!
Sou apenas o Mendigo de Mim-Próprio,
órfão da Virgem do meu sentir.
E como queres que eu faça fortuna
se Deus, por escárnio, me deu Inteligência,
e não tenho sequer, irmãs bonitas
nem uma mãe que se venda para mim?
(Pesam quilos no Meu querer
as salas de espera de Mim.
Tu chegas sempre primeiro...
Eu volto sempre amanhã...
Agora vou esperar que morras.
Mas tu és tantos que não morres...
Vou deixar d'esp'rar que morras
- Vou deixar d'esp'rar por mim!)
Ah! que eu sinto, claramente, que nasci
de uma praga de ciúmes!
Eu sou as sete pragas sobre o Nilo
e a alma dos Bórgias a penar!
E tu, também, vieille-roche, castelo medieval
fechado por dentro das tuas ruínas!
Fiel epitáfio das crónicas aduladoras!
E tu também ó sangue azul antigo
que já nasceste co'a biografia feita!
Ó pajem loiro das cortesias-avozinhas!
Ó pergaminho amarelo-múmia
das grandes galas brancas das paradas
e das Vitórias dos torneios-lotarias
com donzelas-glórias!
Ó resto de cetros, fumo de cinzas!
Ó lavas frias do Vulcão pirotécnico
com chuvas d'oiros e cabeleiras prateadas!
Ó estilhacos heráldicos de Vitrais
despegados lentamente sobre o tanque do silêncio!
Ó Cedro secular
debruçado no muro da Quinta sobre a estrada
a estorvar o caminho da Mala-posta!
E vós também, ó Gentes de Pensamento,
ó Personalidades, ó Homens!
Artistas de todas as partes, cristãos sem pátria,
Cristos vencidos por serem só Um!
E vós, ó Génios da Expressão,
e vós também, ó Génios sem Voz!
ó além-infinito sem regressos, sem nostalgias,
Espectadores gratuitos do Drama-Imenso de Vós-Mesmos!
Profetas clandestinos
do Naufrágio de Vossos Destinos!
E vós também, teóricos-irmãos-gémeos
do meu sentir internacional!
Ó escravos da Independência!
Vós que não tendes prémios
por se ter passado a vez de os ganhardes,
e famintos e covardes
entreteis a fome em revoltas do Mau-Génio
no boémia da bomba e da pólvora!
E tu também, ó Beleza Canalha
Co'a sensibilidade manchada de vinho!
Ó lírio bravo da Floresta-Ardida
à meia-porta da tua Miséria!
Ó Fado da Má-Sina
com ilustrações a giz
e letra da Maldição!
Ó fera vadia das vielas açaimada na Lei!
Ó xale e lenço a resguardar a tísica!
Ó franzinas do fanico
co'a sífilis ao colo por essas esquinas!
Ó nu d'aluguer
na meia-luz dos cortinados corridos!
Ó oratório da meretriz a mendigar gorjetas
p'rá sua Senhora da Boa-Sorte!
Ó gentes tatuadas do calão!
carro vendado da Penitenciária!
E tu também, ó Humilde, ó Simples!
enjaulados na vossa ignorância!
Ó pé descalço a calejar o cérebro!
Ó músculos da saúde de ter fechada a casa de pensar!
Ó alguidar de açorda fria
na ceia-fadiga da dor-candeia!
Ó esteiras duras pra dormir e fazer filhos!
Ó carretas da Voz do Operário
com gente de preto a pé e filarmónica atrás!
Ó campas rasas, engrinaldadas,
com chapões de ferro e balões de vidro!
Ó bota rota de mendigo abandonada no pó do caminho!
Ó metamorfose-selvagem das feras da cidade!
Ó geração de bons ladrões crucificados na Estupidez!
Ó sanfona-saloia do fandango dos campinos!
Ó pampilho das Lezírias inundadas de Cidade!
ó trouxa d'aba larga da minha lavadeira,
Ó rodopio azul da saia azul de Loures!
E vós varinas que sabeis a sal
as Naus da Fenícia ainda não voltaram?!
E vós também, ó moças da Província
que trazeis o verde dos campos
no vermelho das faces pintadas!
E tu também, ó mau gosto
co'a saia de baixo a ver-se
e a falta d'educação!
Ó oiro de pechisbeque (esperteza dos ciganos)
a luzir no vermelho verdadeiro da blusa de chita!
Ó tédio do domingo com botas novas
e música n'Avenida!
Ó santa Virgindade
a garantir a falta de lindeza!
Ó bilhete postal ilustrado
com aparições de beijos ao lado!
E vós ó gentes que tendes patrões,
autómatos do dono a funcionar barato!
Ó criadas novas chegadas de fora p'ra todo o serviço!
Ó costureiras mirradas,
emaranhadas na vossa dor!
Ó reles caixeiros, pederastas do balcão,
a quem o patrão exige modos lisonjeiros
e maneiras agradáveis pròs fregueses!
Ó Arsenal fadista de ganga azul e coco socialista!
Ó saídas pôr-do-sol das Fábricas d'Agonia!
E vós também, ó toda a gente, que todos tendes patrões!
E vós também, nojentos da Política
que explorais eleitos o Patriotismo!
Macrots da Pátria que vos pariu ingénuos
e vos amortalha infames!
E vós também, pindéricos jornalistas
que fazeis cócegas e outras coisas
à opinião pública!
E tu também roberto fardado:
Futrica-te espantalho engalonado,
apoia-te das patas de barro,
Larga a espada de matar
e põe o penacho no rabo!
Ralha-te mercenário, asceta da Crueldade!
Espuma-te no chumbo da tua Valentia!
Agoniza-te Rilhafoles armado!
Desuniversidadiza-te da doutorança da chacina,
da ciencia da matança!
Groom fardado da Negra,
pária da Velha!
Encaveira-te nas esporas luzidias de seres fera!
Despe-te da farda,
desenfia-te da Impostura, e põe-te nu, ao léu
que ficas desempregado!
Acouraça-te de senso,
vomita de vez o morticínio,
enche o pote de raciocínio,
aprende a ler corações,
que há muito mais que fazer
do que fazer revoluções!
Ruína com tuas próprias peças-colossos
as tuas próprias peças colossais,
que de 42 a 1 é meio-caminho andado!
Rebusca no seres selvagem
no teu cofre do extermínio
o teu calibre máximo!
Põe de parte a guilhotina,
dá férias ao garrote!
Não dês língua aos teus canhões,
nem ecos às pistolas,
nem vozes às espingardas!
– São coisas fora de moda!
Põe-te a fazer uma bomba
que seja uma bomba tamanha
que tenha dez raios da Terra.
Põe-lhe dentro a Europa inteira,
os dois pólos e as Américas,
a Palestina, a Grécia, o mapa
e, por favor, Portugal!
Acaba de vez com este planeta,
faze-te Deus do Mundo em dar-lhe fim!
(Há tanta coisa que fazer, Meu Deus!
e esta gente distraída em guerras!)
Eu creio na transmigração das almas
por isto de Eu viver aqui em Portugal.
Mas eu não me lembro o mal que fiz
durante o Meu avatar de burguês.
Oh! Se eu soubesse que o Inferno
não era como os padres mo diziam:
uma fornalha de nunca se morrer...
mas sim um Jardim da Europa
à beira-mar plantado...
Eu teria tido certamente mais juízo,
teria sido até o mártir São Sebastião!
E inda há quem faça propaganda disto:
a pátria onde Camões morreu de fome
e onde todos enchem a barriga de Camões!
Se ao menos isto tudo se passasse
numa Terra de mulheres bonitas!
Mas as mulheres portuguesas
são a minha impotência!
E tu, meu rotundo e pançudo-sanguessugo,
meu desacreditado burguês apinocado
da rua dos bacalhoeiros do meu ódio
co'a Felicidade em casa a servir aos dias!
Tu tens em teu favor a glória fácil
igual à de outros tantos teus pedaços
que andam desajuntados neste Mundo,
desde a invenção do mau cheiro,
a estorvar o asseio geral.
Quanto mais penso em ti, mais tenho Fé e creio
que Deus perdeu de vista o Adão de barro
e com pena fez outro de bosta de boi
por lhe faltar o barro e a inspiração!
E enquanto este Adão dormia
os ratos roeram-lhe os miolos,
e das caganitas nasceu a Eva burguesa!
Tu arreganhas os dentes quando te falam d'Orpheu
e pões-te a rir, como os pretos, sem saber porquê.
E chamas-me doido a Mim
que sei e sinto o que Eu escrevi!
Tu que dizes que não percebes;
rir-te-has de não perceberes?
Olha Hugo! Olha Zola, Cervantes e Camões,
e outros que não são nada por te cantarem a ti!
Olha Nietzche! Wilde! Olha Rimbaub e Dowson!
Cesário, Antero e outros tantos mundos!
Beethoven, Wagner e outros tantos génios
que não fizeram nada,
que deixaram este mundo tal qual!
Olha os grandes o que são estragados por ti!
O teu máximo é ser besta e ter bigodes.
A questão é estar instalado.
Se te livras de burguês e sobes a talento, a génio,
a seres alguém,
o Bem que tu fizeres é um décimo de seres fera!
E de que serve o livro e a ciência
se a experiência da vida
é que faz compreender a ciência e o livro?
Antes não ter ciências!
Antes não ter livros!
Antes não ter Vida!
Eu queria cuspir-te a cara e os bigodes,
quando te vejo apalermado p'las esquinas
a dizeres piadas às meninas,
e a gostares das mulheres que não prestam
e a fazer-lhes a corte
e a apalpar-lhes o rabo,
esse tão cantado belo cu
que creio ser melhor o teu ideal
que a própria mulher do cu grande!
E casaste-te com Ela,
porque o teu ideal veio pegado a Ela,
e agora à brocha limpas a calva em pinga
à coca de cunhas p'ró Cunha examinador
do teu décimo nono filho
dezanove vezes parvo!
(É o caso mais exemplar de Constância e fidelidade
a tua história sexual co'a Felisberta,
desde o teu primogénito tanso
'té ao décimo nono idiota.)
'Té no matrimónio te maldigo, infame cobridor!
Espécie de verme das lamas dos pântanos
que de tanto se encharcar em gozos
o seu corpo se atrofiou
e o sexo elefantizado foi todo o seu corpo!
Em toda a parte tu és o admirador
e em toda a parte a tua ignorância
tem a cumplicidade da incompetência
dos que te falam 'té dos lugares sagrados.
Sim! Eu sei que tu és juiz
e qu'inda ontem prometeste a tua amante,
despedindo-a num beijo de impotente,
a condenação dos réus que tivesses
se Ela faltasse à matinée da Boa-Hora!
Pulha! E és tu que do púlpito
d'essa barriga d'Água da Curia
dás a ensinança de trote
aos teus dezanove filhos?!
Cocheiros, contai: dezanove!!!
Zute! bruto-parvo-nada
que Me roubaste tudo:
'té Me roubaste a Vida
e não Me deixaste nada!
nem Me deixaste a Morte!
Zute! poeira-pingo-micróbio
que gemes pequeníssimos gemidos gigantes
grávido de uma dor profeta colossal.
Zute! elefante-berloque parasita do não presta!
Zute! bugiganga-celulóide-bagatela!
Zute, besta!
Zute, bácoro!!
Zute, merda!!!
Em toda a parte o teu papel é admirar,
mas (caso inf'liz)
nunca acertas numa admiração feliz.
Lês os jornais e admiras tudo do princípio ao fim
e se por desgraça vem um dia sem jornais,
tens de ficar em casa nos chinelos
porque nesse dia, felizmente,
não tens opinião pra levares à rua.
Mas nos outros dias lá estás a discutir.
É que a Natureza é compensadora:
quem não tem dinheiro p'ra ir ao Coliseu
deve ter cá fora razões p'ra se rir.
Só te oiço dizer dos outros
a inveja de seres como eles.
Nem ao menos, pobre fadista,
a veleidade de seres mais bruto?
Até os teus desejos são avaros
como as tuas unhas sujas e ratadas.
Ó meu gordo pelintrão,
água-morna suja, broa do outro v'rao!
Os homens são na proporção dos seus desejos
e é por isso que eu tenho a Concepção do Infinito...
Não te cora ser grande o teu avô
e tu apenas o seu neto, e tu apenas o seu esperma?
Não te dói Adão mais que tu?
Não te envergonha o teres antes de ti
outros muito maiores que tu?
Jamais eu quereria vir a ser um dia
o que o maior de todos já o tivesse sido
eu quero sempre muito mais
e mais ainda muito pr'além-demais-Infinito...
Tu não sabes, meu bruto, que nós vivemos tão pouco
que ficamos sempre a meio-caminho do Desejo?
Em toda a parte o bicho se propaga,
em toda a parte o nada tem estalagem.
O meu suplício não é somente de seres meu patrício
ou o de ver-te meu semelhante,
tu, mesmo estrangeiro, és besta bastante.
Foi assim que te encontrei na Rússia
como vegetas aqui e por toda a parte,
e em todos os ofícios e em todas as idades.
Lá suportei-te muito! Lá falavas russo
e eu só sabia o francês.
Mas na França, em Paris - a grande capital,
apesar de fortificada,
foi assolada por esta espécie animal.
E andam p'los cafés como as pessoas
e vestem-se na moda como elas,
e de tal maneira domésticos
que até vão às mulheres
e até vão aos domésticos.
Felizmente que na minha pátria,
a minha verdadeira mãe, a minha santa Irlanda,
apenas vivi uns anos d'Infância,
apenas me acodem longinquamente
as festas ensuoradas do priest da minha aldeia,
apenas ressuscitam sumidamente
as asfixias da tísica-mater,
apenas soam como revoltas
as pistolas do suicídio de meu pai,
apenas sinto infantilmente
no leito de uma morta
o gelo de umas unhas verdes,
um frio que não é do Norte,
um beijo grande como a vida de um tísico a morrer.
Ó Deus! Tu que m'os levaste é que sabias
o ódio que eu lhes teria
se não tivessem ficado por ali!
Mas antes, mil vezes antes, aturar os burgueses da My
Ireland
que estes desta Terra
que parece a pátria deles!
Ó Horror! Os burgueses de Portugal
têm de pior que os outros
o serem portugueses!
A Terra vive desde que um dia
deixou de ser bola do ar
p'ra ser solar de burgueses.
Houve homens de talento, génios e imperadores.
Precisaram-se de ditadores,
que foram sempre os maiores.
Cansou-se o mundo a estudar
e os sábios morreram velhos
fartos de procurar remédios,
e nunca acharam o remédio de parar.
E inda eu hoje vivo no século XX
a ver desfilar burgueses
trezentas e sessenta e cinco vezes ao ano,
e a saber que um dia
são vinte e quatro horas de chatice
e cada hora sessenta minutos de tédio
e cada minuto sessenta segundos de spleen!
Ora bolas para os sábios e pensadores!
Ora bolas para todas as épocas e todas as idades!
Bolas pròs homens de todos os tempos,
e prà intrujice da Civilização e da Cultura!
Eu invejo-te a ti, ó coisa que não tens olhos de ver!
Eu queria como tu sentir a beleza de um almoço pontual
e a f'licidade de um jantar cedinho
co'as bestas da família.
Eu queria gostar das revistas e das coisas que não prestam
porque são muitas mais que as boas
e enche-se o tempo mais!
Eu queria, como tu, sentir o bem-estar
que te dá a bestialidade!
Eu queria, como tu, viver enganado da vida e da mulher,
e sem o prazer de seres inteligente pessoalmente!
Eu queria, como tu, não saber que os outros não valem nada
p'ra os poder admirar como tu!
Eu queria que a vida fosse tão divinal
como tu a supões, como tu a vives!
Eu invejo-te, ó pedaço de cortiça
a boiar à tona d'água, à mercê dos ventos,
sem nunca saber que fundo que é o Mar!
Olha para ti!
Se te não vês, concentra-te, procura-te!
Encontrarás primeiro o alfinete
que espetaste na dobra do casaco,
e depois não percas o sítio,
porque estás decerto ao pé do alfinete.
Espeta-te nele para não te perderes de novo,
e agora observa-te!
Não te escarneças! Acomoda-te em sentido!
Não te odeies ainda qu'inda agora começaste!
Enioa-te no teu nojo, mastodonte!
Indigesta-te na palha dessa tua civilização!
Desbesunta te dessa vermência!
Destapa a tua decência, o teu imoral pudor!
Albarda te em senso! Estriba-te em Ser!
Limpa-te do cancro amarelo e podre!
Do lazareto de seres burro!
Desatrela-te do cérebro-carroça!
Desata o nó-cego da vista!
Desilustra-te, descultiva-te, despole-te,
que mais vale ser animal que besta!
Deixa antes crescer os cornos que outros adornos da
Civilização!
Queria-te antes antropófago porque comias os teus
– talvez o mundo fosse Mundo
e não a retrete que é!
Ahi! excremento do Mal, avergonha-te
no infinitamente pequeno de ti com o teu papagaio:
Ele fala como tu e diz coisas que tu dizes
e se não sabe mais é por tua culpa, meu mandrião!
E tu, se não fossem os teus pais,
davas guinchos, meu saguim!
- Tu és o papagaio de teus pais!
Mas há mais, muito mais
que a tua ignorância-miopia te cega.
Empresto-te a minha Inteligência.
Vê agora e não desmaies ainda!
Então eu não tinha razão?
P'ra que me chamavas doido
quando eu m'enjoava de ti?
Ah! Já tens medo?!
Porque te rias da vida
e ias ensuorar as vrilhas nos fauteuils das revistas
co'as pernas fogo de vistas
das coristas de petróleo?
Porque davas palmas aos compéres e actorecos
pelintras e fantoches
antes do palco, no palco e depois do palco?
Ora dize-Me com franqueza:
Era por eles terem piada?
Então era por a não terem
Ah! Era p'ra tu teres piada, meu bruto?!
Porque mandaste de castigo os teus filhos p'r'ás Belas-Artes
quando ficaram mal na instrução primária?
Porque é que dizes a toda a gente que o teu filho idiota
estuda p'ra poeta?
Porque te casaste com a tua mulher
se dormes mais vezes co'a tua criada?
Porque bateste no teu filho quando a mestra
te contou as indecências na aula?
Não te lembras das que tu fizeste
com a própria mestra de moral?
Ou queres tu ser decente,
tu, que tens dezanove filhos?!
Porque choraste tanto quando te desonraram a filha?
Porque lhe quiseste matar o amante?
Não achas isto natural? Não achas isto interessante?
Porque não choraste também pelo amante?...
Deixa! Deixa! Eu não te quero morto com medo de ti-próprio!
Eu quero-te vivo, muito vivo, a sofrer!
Não te despetes do alfinete!
Eu abro a janela pra não cheirar mal!
Galopa a tua bestialidade
na memória que eu faço dos teus coices,
cavalga o teu insecticismo na tua sela de D. Duarte!
Arreia-te de Bom-Senso um segundo! peço-te de joelhos.
Encabresta-te de Humanidade
e eu passo-te uma zoologia para as mãos
p'ra te inscreveres na divisão dos Mamíferos.
Mas anda primeiro ao Jardim Zoológico!
Vem ver os chimpanzés! Acorpanzila-te neles se te ousas!
Sagra-te de cu-azul a ver se eles te querem!
Lá porque aprendeste a andar de mãos no ar
não quer dizer que sejas mais chimpanzé que eles!
Larga a cidade masturbadora, febril,
rabo decepado de lagartixa,
labirinto cego de toupeiras,
raça de ignóbeis míopes, tísicos, tarados,
anémicos, cancerosos e arseniados!
Larga a cidade!
Larga a infâmia das ruas e dos boulevards
esse vaivém cínico de bandidos mudos
esse mexer esponjoso de carne viva
Esse ser-lesma nojento e macabro
Esse S ziguezague de chicote auto-fustigante
Esse ar expirado e espiritista...
Esse Inferno de Dante por cantar
Esse ruído de sol prostituído, impotente e velho
Esse silêncio pneumónico
de lua enxovalhada sem vir a lavadeira!
Larga a cidade e foge!
Larga a cidade!
Vence as lutas da família na vitória de a deixar.
Larga a casa, foge dela, larga tudo!
Nem te prendas com lágrimas, que lágrimas são cadeias!
Larga a casa e verás - vai-se-te o Pesadelo!
A família é lastro, deita-a fora e vais ao céu!
Mas larga tudo primeiro, ouviste?
Larga tudo!
– Os outros, os sentimentos, os instintos,
e larga-te a ti também, a ti principalmente!
Larga tudo e vai para o campo
e larga o campo também, larga tudo!
– Põe-te a nascer outra vez!
Não queiras ter pai nem mãe,
não queiras ter outros nem Inteligência!
A Inteligência é o meu cancro
eu sinto-A na cabeça com falta de ar!
A Inteligência é a febre da Humanidade
e ninguém a sabe regular!
E já há Inteligência a mais pode parar por aqui!
Depois põe-te a viver sem cabeça,
vê só o que os olhos virem,
cheira os cheiros da Terra
come o que a Terra der,
bebe dos rios e dos mares,
- põe-te na Natureza!
Ouve a Terra, escuta-A.
A Natureza à vontade só sabe rir e cantar!
Depois, põe-te a coca dos que nascem
e não os deixes nascer.
Vai depois pla noite nas sombras
e rouba a toda a gente a Inteligência
e raspa-lhos a cabeça por dentro
co'as tuas unhas e cacos de garrafa,
bem raspado, sem deixar nada,
e vai depois depressa muito depressa
sem que o sol te veja
deitar tudo no mar onde haja tubarões!
Larga tudo e a ti também!
Mas tu nem vives nem deixas viver os mais,
Crápula do Egoísmo, cartola d'espanta-pardais!
Mas hás-de pagar-Me a febre-rodopio
novelo emaranhado da minha dor!
Mas hás-de pagar-Me a febre-calafrio
abismo-descida de Eu não querer descer!
Hás-de pagar-Me o Absinto e a Morfina
Hei-de ser cigana da tua sina
Hei-de ser a bruxa do teu remorso
Hei-de desforra-dor cantar-te a buena-dicha
em águas fortes de Goya
e no cavalo de Tróia
e nos poemas de Poe!
Hei-de feiticeira a galope na vassoura
largar-te os meus lagartos e a Peçonha!
Hei-de Vara Magica encantar-te Arte de Ganir
Hei-de reconstruir em ti a escravatura negra!
Hei-de despir-te a pele a pouco e pouco
e depois na carne-viva deitar fel,
e depois na carne-viva semear vidros,
semear gumes,
lumes,
e tiros.
Hei-de gozar em ti as poses diabólicas
dos teatrais venenos trágicos do persa Zoroastro!
Hei-de rasgar-te as virilhas com forquilhas e croques,
e desfraldar-te nas canelas mirradas
o negro pendão dos piratas!
Hei-de corvo marinho beber-te os olhos vesgos!
Hei-de bóia do Destino ser em brasa
e tua náufrago das galés sem horizontes verdes!
E mais do que isto ainda, muito mais:
Hei-de ser a mulher que tu gostes,
hei-de ser Ela sem te dar atenção!
Ah! que eu sinto claramente que nasci
de uma praga de ciúmes.
Eu sou as sete pragas sobre o Nilo
e a Alma dos Bórgias a penar!...
de José Almada Negreiros
poeta sensacionista
e Narciso do Egipto
Almada Negreiros

sexta-feira, fevereiro 20, 2009

Casa modernista e painéis de Almada em risco

Património. Uma vivenda construída nos anos 50, exemplar da arquitectura do final do movimento modernista, tem um processo de demolição integral e de construção nova em análise na Câmara de Lisboa. Ontem, alguns azulejos de Almada Negreiros foram retirados do imóvel e a autarquia embargou, para já, a remoção de quaisquer objectos

Moradia com processo pendente na CML

Um painel de azulejos da autoria de Almada Negreiros foi ontem parcialmente removido da parede de uma casa no Restelo, em Lisboa. Mas entretanto, o vereador Manuel Salgado, disse ao DN ter dado instruções para o embargo da obra, "até tudo ser esclarecido" .

A moradia, localizada na Rua da Alcolena, 28, foi construída no início dos anos 50 e depois de ter sido vendida pelos herdeiros da original proprietária - Maria da Piedade Mota Gomes - tem actualmente um processo de licenciamento de obra de construção nova em apreciação nos serviços de urbanismo da Câmara de Lisboa, cujo requerente, é a Soindol, Sociedade de Investimentos Dominiais, Lda.

Ontem, perto da hora de almoço, vários operários retiraram alguns azulejos que revestem uma das varandas da casa, com recurso a rebarbadoras. José de Almada Negreiros (filho), acompanhado das suas filhas, netas do artista plástico e autor do Manifesto Anti-Dantas, estavam incrédulos e indignados perante o que viam. "A Polícia Municipal esteve aqui, mas mal saiu, os homens voltaram ao mesmo e nada os parou", disse a familiar do artista. Ao fim da tarde, Helena Roseta, vereadora do movimento Cidadãos por Lisboa (CPL), deslocou-se ao Restelo para acompanhar de perto a situação e disse ter informado o gabinete da presidência da CML sobre o que se estava a passar. Pouco depois, chegaram elementos da Polícia Municipal que procederam a averiguações e lavraram um auto de notícia.

"O que se está a passar aqui é um atentado ao património, uma barbaridade", disse a vereadora, também arquitecta. "Curiosamente," - e Roseta chamou a atenção para o facto - "este atentado ao património acontece um dia depois de termos pedido o agendamento para discussão em reunião de câmara de uma proposta nossa que defende a abertura de um processo de classificação da moradia como imóvel de interesse municipal". No documento, as vereadoras do CPL defendem ainda a aquisição da casa (numa parceria público-privada), bem como a criação no local de um projecto-piloto de "casa-museu-atelier de artes plásticas". De acordo com Manuel Salgado, a moradia consta do "inventário municipal do património", um anexo ao PDM, facto que para Helena Roseta "implica que nada se possa fazer na casa sem que a câmara se pronuncie". O projecto pendente nos serviços de urbanismo pede a demolição total do imóvel.

Porém, segundo o DN apurou, o promotor e actual proprietário, comprou-a "sem os azulejos incluídos", cumprindo uma exigência do anterior dono. Apesar da tentativa, não obtivemos declarações do promotor até à hora de fecho desta edição.

LUÍSA BOTINAS, Diário de Notícias - 20 de Fevereiro de 2009

quarta-feira, outubro 04, 2006

TEATRO

Nenhuma arte tem de falar para todos a não ser o teatro.
Grandes e pequenos, instruídos e analfabetos, sábios e ignorantes, no teatro todos são Um, e por conseguinte só o que interessa o Único pode ser agradável a todos.
A origem da palavra teatro refere-se à disposição em hemiciclo dos lugares dos espectadores, de maneira que de qualquer lado cada um possa seguir a cerimónia pública.
Por isso o teatro não pode desculpar-se com nenhuma espécie de ignorância, seja a que moleste os sábios, seja a que não ensine os ignorantes.
Não é apenas a arte dramática que pode ser considerada como teatro. As primeiras cerimónias públicas de teatro eram ofícios religiosos e só depois começou a fazer-se a diferença entre o templo sagrado e a comédia profana.
Estimando a origem desta palavra, ficamos sabendo que toda a arte ou qualquer outra linguagem que passa do particular para o geral, faz imediatamente teatro.
Que cada um tenha uma arte que é a maneira de apurar o seu próprio gosto, a ninguém compete julgá-la; mas quando destine ao público a sua arte, desde esse momento é o publico a servir-se e o artista quem serve.

Almada Negreiros

domingo, dezembro 04, 2005


ALMADA NEGREIROS

ANTES DE COMEÇAR




CENA ÚNICA


(Depois de subir o pano, ouve-se um tambor que se vai afastando. Quando já mal se ouve o tambor, o Boneco levanta-se, e vai espreitar ao fundo para fora. Entretanto a Boneca senta-se e está admirada de ver o Boneco a andar. Quando o Boneco volta para o lugar, fica admirado de ver a Boneca sentada a olhar para ele.)

O BONECO - Tu também te mexes como as pessoas?!

A BONECA - (Muito baixinho.) Chiu!...

O BONECO - Só agora é que dei por isso!

A BONECA - (Idem.) Chiu!...

O BONECO - Eu julgava que de nós os dois era eu só que podia mexer-me!

A BONECA - (Sempre muito baixinho.) Eu também julgava que de nós os dois, era eu a única que podia mexer-me!

O BONECO - E nunca sentiste a puxar por ti todas noites?!

A BONECA - (Idem.) É que eu julgava que era o Homem que puxava por mim!

O BONECO - E tu? Puxaste por mim alguma vez?

A BONECA - (Idem.) Nunca... nunca experimentei puxar por ti... Eu tinha pena, se ao puxar por ti, tu não te mexesses. Por isso nunca experimentei!...

O BONECO - Pois eu, todas as noites, quando o tambor do Homem já vai longe, levanto-me e vou espreitar para fora...

A BONECA - Nunca te vi assim!... Às vezes sentia puxarem por mim mas julgava que era o Homem... e deixava-me estar boneca...

O BONECO - Se eu soubesse que tu eras como eu!

A BONECA - Se eu soubesse que também tu eras assim!

O BONECO - A culpa é tua! Eu bem puxei por ti todas as noites!

A BONECA - Que pena! E eu que não adivinhei que eras tu! Olha, perdoas? Tu não imaginas como eu sou tímida!...

O BONECO - É asneira!...

A BONECA - Chiu!... Não fales alto!

O BONECO - Não está ninguém lá fora! Eu nunca me levanto sem ter pensado primeiro se está alguém lá fora!... Só depois de ter pensado bem é que me levanto... E até hoje, ainda ninguém deu por nada... nem tu!

A BONECA - É verdade, nem eu...

O BONECO - Tu és tímida!

A BONECA - Pois sou...

O BONECO - E não há razão... pois se temos a certeza de que não está ninguém a ver! Faz algum mal?

A BONECA - Mas se vissem?

O BONECO - Não podem ver!

A BONECA - Tu tens a certeza de que não te podes enganar?

O BONECO - As pessoas é que se enganam! Nós os bonecos, nunca nos enganamos!!!...

A BONECA - A dizer a verdade, eu nunca me enganei... Mas nunca faço nada porque tenho medo de me enganar!...

O BONECO - (A ralhar.) Pareces mais uma menina do que uma boneca!!!

A BONECA - Mas o que é que queres?... Eu sou assim... A ti que és boneco, não te fica mal levantares-te por tua própria iniciativa e sem que ninguém saiba... (A crescer de interesse.) Mas achas que me ficava bem a mim uma boneca, levantar-me por minha própria vontade, sem mais nem menos?

O BONECO - Estou-te a dizer que todas as noites me fartei de puxar por ti!...

A BONECA - Eu julgava que era o Homem!

O BONECO - Ora aí está! De que serviu eu ter puxado tanto por ti, se tu te punhas a julgar outras coisas!...

A BONECA - (Perfil.) Chiu!... Supõe tu que era o Homem.

O BONECO - Mas não era o Homem, era eu!!!

A BONECA - (3/4.) Mas eu é que não sabia!...

O BONECO - Olha! Digo-te outra vez: pareces mais uma menina do que uma boneca!

A BONECA - E não dizes nada mal!... Pois quantas e quantas vezes eu me esqueço de que sou uma boneca e me ponho a pensar, exactamente como se fosse uma menina!

O BONECO - (Ri.) Isso é mesmo de boneca!

A BONECA - Mas que queres que eu faça? Eu sou assim... Não fui eu que me fiz!... E tu também não podes falar!... Tu levantas-te quando te apetece e mexes-te à tua vontade, como se fosses uma pessoa... e isto, para um boneco parece a mais!...

O BONECO - És mesmo parvinha de todo! É o que eu te digo: nem pareces uma boneca! Então tu não sabes, minha estupidazinha, que um boneco, quando não está ninguém a ver se mexe à sua vontade?

A BONECA - Já me quis parecer isso... tenho pensado muito a esse respeito... mas a certa altura começa-me a doer a cabeça e nunca consegui, até hoje, pensar esse assunto todo até ao fim!

O BONECO - Tu és uma fraca!

A BONECA - Pois sou... Não tenho coragem nenhuma! Eu nem tive coragem para me mexer da posição em que o Homem me deixasse!... E tu? Lembravas-te sempre, exactamente, da posição em que o Homem te tinha deixado?

O BONECO - Sempre!

A BONECA - Ah! Que boa memória que tu tens... Eu não sei se tenho boa memória. Nunca até hoje tive coragem para experimentar levantar-me da posição em que o Homem me tinha deixado...

O BONECO - Então como é que sabias que podias mexer-te?

A BONECA - Ouve! Eu explico-te: quando já havia muito tempo que eu não sentia nada em redor de mim, depois de o tambor se ouvir já lá muito ao longe... eu abria assim um bocadinho os olhos sem ninguém perceber... e ficava a perceber tudo... depois experimentava muito devagarinho mexer um dedo qualquer, ao calhar, e mexia!... Outras vezes estendia um nadinha uma perna, que ninguém podia dar por isso... experimentei aos poucochinhos mexer tudo, muito devagarinho e tudo mexia!... Ah! Que se eu tivesse a certeza de que não me esqueceria da posição em que o Homem me tinha deixado... eu havia de me levantar e dar uma voltazinha, para experimentar...

O BONECO - O que me espanta, é que nunca tenhas dado por mim!

A BONECA - Não estás com certeza mais admirado do que eu... mas talvez seja por eu ficar quase sempre por acaso com a cara virada p'ró chão... e quando ficasse com a cara p'ra cima, também em nada podia reparar, pois mal te sentisse mexer, punha-me logo a julgar que era o Homem que estava a puxar por ti... e fazia-me imediatamente boneca... Foi sempre tão grande o medo que eu tinha que o Homem soubesse que eu mexia, que à mais pequenina coisa me punha logo como morta...

O BONECO - Ouve lá! Porque é que falas tão baixo? A tua voz não dá mais do que isso?

A BONECA - Parece-me que dá... Ainda não experimentei gritar, mas tenho a certeza de que sou capaz de dar o grito que se ouve mais de longe!

O BONECO - Então porque falas tão baixo?

A BONECA - (Muito baixinho.) Chiu!... É por causa do Homem... Coitado, se ele soubesse que nós mexemos!... Tu já pensaste a sério a este respeito? Um dia, sem querer, tu julgas que o Homem não está aqui e ele está a ver-te! Que horror!!! Nem quero pensar!

O BONECO - Ora! Mesmo que o Homem me visse a mexer, julgava que era um sonho... Não acreditava...

A BONECA - Não é tanto assim!... Tu é que não sabes o que se passa! Há dias, o Homem estava bem disposto, chamou a mulher dele e disse-lhe a apontar para mim: não achas que ela - era eu - tem cara de quem está à espera de que a gente não esteja a ver para se pôr à sua vontade?

O BONECO - Foi o Homem quem disse isso assim?!

A BONECA - Juro-te pela minha boa sorte!!!

O BONECO - E a mulher do Homem o que é que disse?

A BONECA - A mulher do Homem disse assim: (Devagar.) Olha que estás para aí a dizer uma coisa que já me tem vindo à ideia muitas vezes e sem eu querer!

O BONECO - Foi só isso que eles disseram?

A BONECA - E achas pouco?!!! Os filhos deles também já andam desconfiados... e agora, em vez de irem brincar como dantes, vão-se pôr à espreita ali, daquele canto, à espera de que qualquer de nós de mexa...

O BONECO - Seja quem for, se vir um boneco a mexer sozinho, julga sempre que é um sonho... e não acredita!

A BONECA - Faz tu o que quiseres: a mim é que eles não me hão-de ver nunca a mexer sozinha!

O BONECO - Tu és medrosa!

A BONECA - Pois sou...

O BONECO - Mas eu já fui espreitar... não está ninguém aqui ao pé.

A BONECA - Tens a certeza? Tu nem sequer sabias o que eles tinham estado a dizer a nosso respeito!...

O BONECO - Sim, tenho a certeza! Foram todos juntos p'ra cidade chamar gente p'ró espectáculo daqui a bocado... O Homem levava o bombo e os pratos; quem tocava o tambor, hoje, era o filho mais velho; a mulher levava o cornetim e a filha ia à frente com o cartaz e os guizos.

A BONECA - Logo hoje por infelicidade, a filha não me quis levar com ela! Quando está contente leva-me sempre na algibeira do casaco...

O BONECO - Já por várias vezes fomos os dois juntos dentro da mesma algibeira!...

A BONECA - É verdade!... Nesse tempo não sabia que tu eras como eu...

O BONECO - É verdade!... nem eu!... e podíamos ter falado tanto, dentro da algibeira!... Fartei-me de puxar por ti!...

A BONECA - Eu não sabia que eras tu!

O BONECO - Era eu!

A BONECA - Porque não me disseste ao ouvido?

O BONECO - Eu não sabia que tu ouvias!

A BONECA - Pois ouvia!

O BONECO - E tu nunca te aborrecias de estar sempre na posição em que o Homem te tinha deixado?

A BONECA - Punha-me a pensar... Pensei muito! Pus por ordem todas as coisas que aconteceram comigo... Sei tudo de cor...

O BONECO - Conta, conta o que sabes!...

A BONECA - Só há uma coisa que eu não sei e que também aconteceu comigo...

O BONECO - O que foi?

A BONECA - Não sei explicar a razão por que são tão pequenas as pessoas que vêm todas as noites ver o espectáculo!...

O BONECO - (Ri.) São assim tão pequenas porque ainda não chegaram a grandes... As pessoas pequenas chamam-se crianças.

A BONECA - Isso não sabia eu... Era a única coisa que eu não tinha sido capaz de compreender!... Via umas pessoas maiores e outras mais pequenas, e não sabia a razão.

O BONECO - Ah! Ah! Ah!

A BONECA - Naturalmente estás-me a enganar?...

O BONECO - Não te estou a enganar, não... estou a rir-me do que terás para contar se não sabias que as pessoas antes de serem grandes começam por ser pequeninas!... (Ri.)

A BONECA - E não sabia! É alguma obrigação saber essas coisas? Se começas a rir não te posso perguntar outra coisa que também não sei e que também aconteceu comigo...

O BONECO - O que foi? Pergunta!

A BONECA - P´ra onde é que vão as pessoas grandes?

O BONECO - Vão ver outras coisas!

A BONECA - Então há outras coisas?

O BONECO - São só p'rás pessoas grandes.

A BONECA - Ainda nunca vi... nunca aconteceu comigo... só sei do que já aconteceu comigo...

O BONECO - As coisas que há p'rás pessoas grandes só quando acontecem connosco é que se compreendem.

A BONECA - Talvez que ainda venham a acontecer comigo!... contigo já aconteceram?

O BONECO - Também ainda não... Só as crianças é que gostam de bonecos... As pessoas grandes fartaram-se de ver bonecos e foram ver outras coisas...

A BONECA - Naturalmente, estiveram que tempos à espera que nós mexêssemos, e como nunca nos mexêssemos nem disséssemos nada, aborreceram-se e foram-se embora!

O BONECO - Não sei se é assim como tu estás a dizer... Só sei que o Homem descobriu que as crianças gostavam de ver os bonecos a mexer como as pessoas...

A BONECA - O Homem teve uma boa lembrança de fazer mexer os bonecos por causa das crianças.

O BONECO - Do que as crianças gostavam mais era de chegar a ser bonecos!!!

A BONECA - Felizmente para o Homem, há sempre crianças por toda a parte!... Porque é que elas gostam de ver os bonecos mexer como as pessoas?

O BONECO - É porque começam a pensar em muitas coisas que ainda não aconteceram com elas!

A BONECA - Ah!... Eu sou como as crianças... só sei do que já aconteceu comigo!...

O BONECO - Conta! Conta o que sabes!

A BONECA - Eu não sei se o que aconteceu comigo tem algum valor... mas tu não calculas a porção de coisas sérias que têm passado p'la minha cabeça por causa do que aconteceu comigo!... coisas de nada e que nunca mais acabam!

O BONECO - Tu é muito divertida!!!

A BONECA - Tu não me conheces! Tu estás habituado a ver-me só por fora... nunca aconteceu veres o que eu sou por dentro!...

O BONECO - Era isso mesmo que eu queria que tu contasses!

A BONECA - Tu sabes bem que eu não tenho história... a minha história é a daquela que me fez... Mas não sei mais nada... Assim eu soubesse contar-te a única história que eu sei!

O BONECO - Sabes, sim! Conta!

A BONECA - (Pausa.) Fui feita especialmente para a própria que me fez... e p'ra mais ninguém!... Talvez a minha história não valha nada... mas foi só feita p'ra Ela!... Ela nunca pensou em mostrar-me a mim... Longe estava Ela, quando me fez, de supor que eu havia de ir p'ro teatro! Ela fez-me de propósito só p'ra Ela, p'ra não estar sozinha... fui feita aos pedacinhos, de coisas que já não serviam p'ra mais nada... Aqueles pedacinhos mais bonitos das coisas que já não serviam p'ra mais nada, guardava-os Ela p'ra me fazer a mim... Achas que tem algum valor a minha história?

O BONECO - Conta, conta que eu gosto muito!

A BONECA - Fui feita aos poucochinhos. Ela não podia estar sempre a tratar de mim... era só àquelas horas, depois de estar tudo pronto... Quando não havia mais nada que fazer... então, é que chegava a minha vez!... Mas não era porque Ela não me quisesse e muito, mas as outras coisas não podiam ficar por fazer... não achas? Era justo, eu estava depois das outras coisas... No fim de tudo, logo a seguir, era eu!... Mas quando chegava a minha vez, tu não imaginas, Boneco, a alegria que Ela trazia nos olhos!!! Via-se perfeitamente que não tinha pensado noutra coisa!... Achas que vale a pena continuar?

O BONECO - Conta, conta! Eu gosto muito!... E parece-me que estou a reconhecer essa menina!...

A BONECA - Não há outra no mundo!... E se for a mesma tu sentes logo... ainda que eu não te saiba contar a história dela!

O BONECO - Se for Ela, eu digo-te.

A BONECA - Tu não imaginas, Boneco, o que Ela fez por mim! Fui muito pensada!... Dia e noite não pensava noutra coisa... Ela cuidou imenso em dar-me um feitio que encantasse!... Fez tudo por mim!... Eu era p'ra sair melhor do que saí... Ah! Se eu fosse como Ela me tinha pensado!!! Mas eu estou contente... eles é que não sabem ver-me, eles vêem-me só por fora e julgam que por dentro não tenho nada... Não é que eu seja por dentro diferente do que eu sou por fora... é a mesma coisa... Mas eles vêem-me mal por fora, porque não sabem como eu sou por dentro... Ninguém sabe ver-me!... Oh! Ela, sim!... Se ao menos eles soubessem como eu fui feita!... Ah! Lembro-me tão bem!... Fui feita com o coração!... Se o que sai do coração fosse igual ao que está por dentro... não era uma simples boneca vestida de seda... era outra coisa! Era o próprio coração por dentro! Nunca viste o coração por dentro?

O BONECO - (Devagar.) Vi! É uma boneca vestida de seda...

A BONECA - Oh! Como tu viste bem o coração!!! Dá-me a tua mão... (Pausa.) Conta como tu viste o coração!...

O BONECO - Não me perguntes nada... Deixa estar calado o meu coração... (Pausa.)

A BONECA - Ouve, Boneco! Tu achas que eu sou bonita? É porque ela quis tanto fazer-me exactamente como era por dentro e por fora... E é por isso que eu me acho tão linda!... Por isso é que eu gosto tanto de mim... Olha bem p'ra mim... Já reparaste bem?... Os meus olhos... a minha boca... os meus cabelos... a cor dos meus olhos... a cor da minha boca... a cor dos meus cabelos... o meu feitio... a minha maneira de vestir... todas estas coisas são d'Ela!... Ela e eu somos uma coisa só!... Ela copiou-se exactamente em mim!...

O BONECO - Nós, os bonecos, somos o melhor retrato da idade de quem nos fez!!!

A BONECA - Ah!... Tu dizes tão certas as coisas! Vê-se perfeitamente que já aconteceram comigo!

O BONECO - Não me perguntes nada... Deixa estar calado o meu coração... (Pausa.)

A BONECA - Às vezes, o dia não vinha como Ela tinha esperado! Quando tal acontecia, nem eu sequer vinha a propósito... Nada lhe servia... Ninguém diria que era Ela própria que estava ali!... Mas outras vezes, tudo era d'Ela!... Ela é que animava todas as coisas... Ao pé dela tudo era riqueza e alegria! Ela havia de fazer muita falta a quem não a conhecesse!... Tu não imaginas a porção de novidade que Ela tinha p'ra dar, se alguém lhas viesse pedir!... Nunca veio ninguém! Alguns ainda olharam mas não a viram... Nunca ninguém soube que Ela era a Rainha!

O BONECO - Parece-me que estou a reconhecer essa menina...

A BONECA - Uma grande Rainha que não tinha mais nada do que uma boneca feita por Ela!... Era eu, a boneca... Todos passaram diante d'Ela e ninguém se ajoelhou. Se a tivessem conhecido como eu a conheci todos ajoelhariam diante d'Ela!...

O BONECO - Parece-me que estou a reconhecer essa menina!...

A BONECA - Não há outra no mundo!

O BONECO - Mas... esta que eu digo não se parece contigo!

A BONECA - E por dentro? Também não se parece comigo?

O BONECO - Por dentro é que eu te acho tal e qual!

A BONECA - É que tu ainda não me viste bem por fora!

O BONECO - Talvez sejam parecidas só por dentro...

A BONECA - Isso não pode ser! O que uma pessoa é p'ra fora é igual p'ra dentro! É uma coisa só!... Isso que tu dizes não está certo... não é assim... Tu não sabes isso bem!... Isso ainda não aconteceu contigo!

O BONECO - Tudo o que acabas de dizer acontece comigo também!...

A BONECA - É porque tu ainda não me viste bem por dentro mas agora, já que nos conhecemos, havemos de falar muito... p'ra nos conhecermos ainda melhor um ao outro, por dentro e por fora... Deus queira que isto vá muito bem connosco!

O BONECO - Eu sou como tu... tudo o que aconteceu comigo eu sei de cor... é tudo tão fácil! Só, não sei...

A BONECA - Conta, conta!

O BONECO - Foi uma das coisas que aconteceu comigo...

A BONECA - Não tenha medo de contar!

O BONECO - Não, Boneca, ouve! Deixa estar calado o meu coração... ele está calado por causa de mim.

A BONECA - Se eu soubesse falar de outras coisas!... Mas eu só sei do que aconteceu comigo.

O BONECO - Não, Boneca... não digas nada... Deixa estar calado o meu coração... Eu não soube ouvir o coração... e o que ele quer é tão claro!

A BONECA - O que é claro é como a luz!

O BONECO - A luz não se engana!...

A BONECA - Nos é que nos enganamos com a luz.

O BONECO - É assim que acontece com a luz!... (Pausa.)

A BONECA - Ouve! Tu também sentes o coração dentro de ti muito grande... que não cabe dentro do peito? Ah! Eu sou tão pequena! E o coração está dentro de mim... à espera pronto p'ra sair... pronto p'ra dar-se e a hora não chega!

O BONECO - Aquela hora que há...

A BONECA - Aquela hora que não passa... aquela hora que ainda não veio... aquela hora que deixa passar as outras adiante... as horas de esperar!...

O BONECO - Deixa estar calado o meu coração...

A BONECA - Dá-me a tua mão!... que eu saiba da tua mão... Que as tuas mãos não sejam as minhas!... que sejam outras mãos como as minhas... As minhas mãos não me bastam... faltam-me outras mãos como as minhas!

O BONECO - É assim que bate o coração...

A BONECA - Dá-me a tua mão!... que os nossos corações sejam a repetição um do outro como é justo!... que as tuas mãos me tragam festas, me tragam paz... paz que se ganha!... (Pausa.) Dá-me as tuas palavras!... essas que tu guardas... essas palavras que não morrem, nem se matam!... essas que lembram o mar... o mar que nunca pára... o mar que não se cansa... o mar que insiste... o mar que não se gasta

O BONECO - Cala-te, coração! Deixa ouvir o mar...

A BONECA - Tu também viste o mar?

O BONECO - O mar foi feito por nossa causa!...

A BONECA - Ah!... É assim, juro-te, exactamente assim o mar... Oh! Como tu o viste bem! Dá-me a tua mão p'ra ser tão grande o silêncio... (Pausa.) O mar!... não acaba nunca o mar!...

O BONECO - O mar começa sempre...

A BONECA - É como o coração dentro de mim!... E nunca sai do peito o coração!...

O BONECO - Como pode mudar-se o coração?...

A BONECA - Às vezes a luz brilha no mar... como se tivesse chegado a hora...

O BONECO - É a fé! É o coração que não se engana!

A BONECA - Mas quando o sol desaparece fico eu tão sozinha! Fico a pensar no que tem acontecido... e não sei o que me falta!... Se não fosse o luar, ainda ficava mais sozinha!... Se me ponho a pensar que o luar me faz companhia, sinto-me enganada! E nos dias em que chove, a chuva também foi enganada...

O BONECO - A quem acredita no coração tudo serve de engano.

A BONECA - Mas quando é o coração que fala, parece-me de mais p'ra mim.

O BONECO - O coração é maior que nós!

A BONECA - E eu sou tão pequenina! P'ra que me deram um coração tão grande?...

O BONECO - Deus fez-nos um coração p'ra não sermos tão pequenos como nós...

A BONECA - Mas é que não tenho forças p'ra ele! Ele é grande de mais p'ra mim! Tu já reparaste bem como eu sou pequenina?

O BONECO - Tu és do tamanho dos que têm coração.

A BONECA - Ah!... é assim, juro-te, é exactamente assim como tu estás a dizer!... mas a hora não chega!... Eu saberei esperar... mas o tempo não espera!..

O BONECO - Assim, é não saber esperar!

A BONECA - Eu por mim não me importo... mas o coração?

O BONECO - O coração espera por nós!

A BONECA - Mas tu não vês que eu sou pequenina... que não tenho forças... que eu não sou como o mar que não se gasta!... tu não vês que eu passo depressa?

O BONECO - Por mais depressa que passes, o teu coração espera por ti... o teu coração não espera mais ninguém... Se tu não vieres, o teu coração não espera mais ninguém... Se tu não vieres nunca, o teu coração não conta, não ouve. É como se não tivesse havido coração. Por mais depressa que passes, dá-te inteira ao teu coração... Porque só sabe do tempo quem não traz coração... o tempo é pecado de quem não sabe amar!!!

A BONECA - Ah!... é assim, juro! É exactamente assim que bate o coração!

O BONECO - Acredita no coração! Ele sabe de cor o que quer!... Não foi necessário ao coração ir aprender o que queria... A nossa cabeça é que precisa de aprender o que quer o coração!

A BONECA - É assim que bate o coração...

O BONECO - O coração nunca está só... O nosso coração é nosso, ele não pode viver sem aquele a quem pertence... ele espera por nós!

A BONECA - Às vezes, a cabeça quer ser mais do que o coração... e fica de costas viradas p'ro coração!

O BONECO - A cabeça não deve ser senão o que o coração quiser! Nunca é o coração que nos falta, somos nós que faltamos ao coração!

A BONECA - Ah!... é assim, juro, é assim que bate o coração!...

O BONECO - Só não entende o coração quem não sabe escutá-lo... ele está sempre a contar aquela hora por que se espera... aquela hora que existe p'ralém da sabedoria... e que tem a forma simplicíssima dum coração natural!...





(Começa-se a ouvir um tambor lá muito ao longe. De repente, os Bonecos ficam na posição em que estavam ao princípio. O tambor vem-se chegando a pouco e pouco. Quando já está bastante perto, ouvem-se muitas vozes de crianças em grande alegria. Depois percebe-se que chegaram ao pé do teatro, e é quando começa a música com o bombo, os pratos, o cornetim, o tambor e os guizos. Abre-se a cortina do fundo e do lado de fora estão sentadas nos bancos muitas crianças com as pessoas que as acompanham. Quando já está quase a começar a representação desce o pano.)


FIM

sábado, dezembro 03, 2005

ANTES DE COMEÇAR
de Almada Negreiros


fotografia de Luís Rocha
O Sonho do Almada
Numa noite em que reli esta peça do Almada, confesso... que me comovi até às lágrimas. No fim da leitura, sorri ironicamente dos meus olhos enevoados, não percebendo o que as tinha provocado. Se eram as lembranças da adolescência, ou se tinha estado a sonhar com o coração, no sonho do Almada. Então, decidi continuar a sonhar com um coração que não se cala. E fiquei contente, porque tinha este ponto em comum com o Almada! Fui para a cama e adormeci sem pesadelos...
À Maria e ao João, que se estreiam com este texto, os meus mais sinceros desejos de felicidades, e que o Teatro lhes dê os sonhos mais bonitos das suas vidas. Afinal de contas... o que é a vida sem teatro? Nada! Porque o teatro é uma arte maior, como Mestre Almada nos mostra neste texto.

VIVA O TEATRO
VIVA
JOSÉ DE ALMADA NEGREIROS

Juvenal Garcês
1 de Dezembro de 2005

terça-feira, novembro 29, 2005

PARABÉNS À COMPANHIA TEATRAL DO CHIADO E AOS 10 ANOS DAS OBRAS COMPLETAS DE WILLIAM SHAKESPEARE EM 97 MINUTOS...
mais coisa menos coisa


Aos vinte e quatro dias de Novembro do ano da graça de mil novecentos e noventa e seis, estreava no reino dos Algarves, mais propriamente na cidade foraleira de Portimão, aquele que viria a constituir-se como o maior êxito teatral de sempre em terras lusas: As Obras Completas de William Shakespeare em 97 Minutos, homenagem de três norte-americanos não alinhados: Adam Long, Jess Borgeson e Daniel Singer, ao Gil Vicente lá das Terras de Sua Majestade: William Shakespeare! Paródia que mereceu desde então adjectivações várias: «alucinante», «irreverente», «cardíaco», «hilariante», «desopilante», «burlesco», «divertido», «transversal», «louco», «irresistível», «fenómeno», «endiabrado», «interactivo», «mordaz», «histriónico», «genial», «excelente», «imperdível», «incontornável», «truculento», «indispensável», «obrigatório», etc., etc., etc. ...! Pois bem, volvidos nove anos a gesta da Companhia Teatral do Chiado continua com toda a pujança e regressa uma vez mais ao reino dos Algarves por ocasião do Festival de Outono da mui prestigiada instituição INATEL. O Auditório Pedro Ruivo (Conservatório Maria Campina) acolherá assim o mais energético elenco do país: João Carracedo, Manuel Mendes e Simão Rubim. A função terá lugar no dia 25 de Novembro (mera coincidência de data!) pelas 21h30. É pois com muita alegria e muita festança que a Companhia Teatral do Chiado vê as suAs Obras Completas de William Shakespeare em 97 minutos entrarem no 10º ano consecutivo de representações. Para os autos e para a história registe-se a 102ª digressão e a 909ª representação para um cômputo de mais 138.500 espectadores.
IMPRENSA

Lauro António Comércio do Porto
«Percebe-se porque razão muitos espectadores já viram vezes sem fim esta obra, porque ela nunca é a mesma, vive da improvisação do dia, da relação palco-plateia que se estabelece, e da inspiração de uns e outros. Este é o tipo de teatro que nenhum meio tecnológico consegue substituir. Perante o cinema, a televisão ou mesmo a interactividade do pc, este teatro não morre, sobrevive.»

Joel Neto Record
«A "soirée" é imperdível.»

José Jorge Letria Jornal da Costa do Sol
«Vale a pena ter presente o êxito desta companhia profissional que, erguendo alto a bandeira que Mário Viegas nunca deixou de empunhar, assume o teatro como um projecto profissional de qualidade que não se confina ao espartilho das modas (...) imposto pela crítica dominante.»

Ricardo Salomão Blitz
«... uma intensa interactividade com a audiência, conseguindo construir com segurança, alegria e inteligência uma enorme festa.»

Jaime Cravo Política Moderna
«A melhor homenagem (em originalidade e simplicidade) alguma vez feita ao criador de Romeu e Julieta. Eles, os três shakers preferidos de Shakespeare, com a capacidade para 37 shots de cair para o lado, merecem todas as palmas e mais algumas. Ela, a Companhia Teatral do Chiado, merece o sucesso que tem tido e o apoio que não tem do Ministério da Cultura. Juvenal Garcês foi quem dirigiu, Vasco Letria deu luz (...). Para todos eles, e mais alguns, muitos, Gustavo Rubim, Rita Lello, Jorge Pinto (...). Para todos, pensamos não ter esquecido ninguém, a POLÍTICA MODERNA tem algumas palavras que ainda ninguém lhes deu: gostámos muito do espectáculo.»

Manuel João Gomes Público
«Nunca tão poucos actores - um trio exímio na arte de comunicar - provocaram tantas gargalhadas (...)»

Eugénia Vasques Expresso
«A Revisitação hilariante da Obra Completa do velho Bardo.»

Rita Bertrand A Capital «Toda a plateia ruboresce de riso com as piadas picantes»

Ana Maria Ribeiro Correio da Manhã
«Um espectáculo absolutamente hilariante, a um ritmo de cortar a respiração»

Carla Maia Notícias Magazine
«Um trio de actores insuperável»

Fernando Midões Diário de Notícias
«Shakespeare revisitado numa obra que consegue ser plena, conseguida, lucida, critico-humorística»

Marina Ramos Público
«Um espectáculo interactivo, capaz de eliminar qualquer depressão»

Sofia Reis Valor
«Se quer passar um bom serão, não perca esta peça. Vai ver que não se arrepende.»

Carlos Porto JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias
«Situações de grande comicidade que se deve ao texto, àa tradução, ao ritmo imposto pela encenação e ao trabalho interpretativo.»

José Mendes
«Esta (...) proposta da Companhia Teatral do Chiado é irresistível. Está bem de ver e rever.»

Mulher-Aranha Público (Computadores)
«Não parei de rir»

Alexandra Carita A Capital
«Um espectáculo que já deu provas da sua qualidade»

Carla Maia de Almeida Notícias Magazine
«Garante-se riso puro e visceral»

Tito Lívio Correio da Manhã
«Um espectáculo endiabrado e velocíssimo»

Rute Coelho Tal & Qual
«Se quer passar uma noite bem-disposta, não perca»

Manuel Agostinho Magalhães Expresso
«Um "digest" de rir à gargalhada»

Jorge Sampaio, Presidente da República
«Excelente peça. Irreverente, mas muito bem feita. Aqui, aprendi a olhar Shakespeare de uma maneira muito divertida»

Ana Sousa Dias Por Outro Lado - RTP2
«Nunca ri tanto e tanto tempo seguido na minha vida. Fartei-me de chorar de rir»

Eugénia Vasques Expresso
«Os professores de literatura inglesa têm aqui uma bela proposta para um teste de avaliação de conhecimentos ou, se quiserem distribuir felicidade, para uma introdução paródica à obra de Shakespeare. A brincadeira, em ritmo e adaptação muito portugueses, pode redundar em muita seriedade.»
ANTES DE COMEÇAR
de Almada Negreiros
ilustração de Miguel Sá Fernandes
“(...) as pessoas antes de serem grandes começam por ser pequeninas!”
ANTES DE COMEÇAR, Almada Negreiros

Algures no teatro do mundo, há um boneco e uma boneca que se mexem como as pessoas. O boneco não sabe que a boneca se mexe como as pessoas e a boneca não sabe que o boneco se mexe como as pessoas. As pessoas não sabem que o boneco e a boneca se mexem como elas.
ANTES DE COMEÇAR é uma conversa entre o boneco e a boneca, quando descobrem que se mexem e falam como as pessoas.
Almada Negreiros, único grande dramaturgo português do séc. XX, construiu uma fábula comovente e simples: não são animais que falam, são dois seres que, criados por humanos, se animam na ausência dos humanos. Fantoches? Marionetas?
Boneco e boneca, soprados de vida, vêem o mundo das pessoas; o mundo das pessoas grandes e o mundo das pessoas pequeninas porque “as pessoas antes de serem grandes começam por ser pequeninas!”. O boneco revela as poucas certezas do pequeno mundo que conhece; a boneca conta o que lhe aconteceu e que é tudo o que sabe. Ambos aprendem que o coração, ao invés da cabeça, sabe sempre o que quer.
Fantoches? Marionetas? Talvez. Mas…silêncio, por favor. Porque a peça antes da peça vai agora começar...

ANTES DE COMEÇAR, de Almada Negreiros é o novo espectáculo da CTC, com estreia marcada para dia 27 de Novembro, pelas 16h.

interpretação: João Marta e Maria Albergaria
encenação: Juvenal Garcês
horário: sábados e domingos às 16h; segunda a sexta-feira para escolas mediante marcação