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quinta-feira, setembro 07, 2017

A "polémica" Uma Casa Portuguesa de Mísia


Esta “polémica” em torno da recusa de Mísia em interpretar num concerto na Argentina o Uma Casa Portuguesa, revelou-se muito interessante. Não pela polémica em si mas sim no como realidades diferentes podem suscitar interpretações diferentes de um mesmo tema.
Resumindo, parece que a Mísia foi a uma grande sala de Buenos Aires fazer um concerto de homenagem a Amália Rodrigues. Parece que alguém da plateia gritou, pedindo o tema, o “Casa Portuguesa”. A Mísia recusou-se a interpretar o fado, o que está no direito dela… podia não o saber, não o ter ensaiado, etc. etc. Mil e uma desculpas plausíveis estavam ao seu alcance para negar a sua interpretação. Mas foi mais fundo, dizendo: “Não, não vou cantar ‘Uma Casa Portuguesa’. Não cantei durante 25 anos de trajectória nem cantarei jamais, porque não gosto dessa ideia de uma casinha pobrezinha com um pouco de pão, um pouco de vinho. Não gosto dessa questão humilde da letra.”
Esta é, aliás, a leitura que habitualmente se faz desta música. Vasco Graça Moura, no seu ensaio Amália: dos poetas populares aos poetas cultivados refere: “Mas o certo é que se deparam outras possibilidades importantes para a abordagem do tema genérico da tradição. E, nessa perspectiva, equacionar a tradição com a história portuguesa anterior ao 25 de Abril implica também revisitar o mundo que essa tradição não só espelhava como propunha como “ideal de felicidade”, pondo esta expressão entre aspas muito carregadas. (…) À religiosidade simples, a que o fatalismo respirado na sina vivida não vai sem acrescentar uma nota supersticiosa, acresce um mundo que se pretende pitoresco, mas que é de carência apresentada, vivida e tomada metaforicamente como “abastança”. O fado tradicional dos anos 30, 40 e 50, nesse sentido, faz gala da escassez, da pobreza e da humildade da condição que, segundo as letras, são as das suas personagens, em especial dos amantes, o que também acabaria por ter, evidentemente, um sentido político de rejubilação legitimadora da propaganda nacional promovida pelo respectivo secretariado.
Uma casa portuguesa, de 1953, com letra habilmente engendrada por Reinaldo Ferreira e Vasco de Matos Sequeira e música de Artur Fonseca, e esplendorosamente interpretado por Amália Rodrigues, tornou-se um autêntico cartaz musical de propaganda do SNI, em Portugal e no estrangeiro. Neste paradoxo de se tratar de um belo fado, um dos melhores de Amália, que serviu medíocres motivações políticas, todos os rodriguinhos são convocados: o sabor do pão e do vinho oferecidos a quem bate à porta, a “alegria da pobreza”, o “fumegar da tigela”, o ambiente modesto da casa, do “conforto pobrezinho do meu lar”, o “pouco, poucochinho” que basta “para alegrar uma existência singela”, entrelaçando-se com o registo do amor e do carinho de quem oferece hospitalidade…
É uma casa portuguesa, com certeza!
É, com certeza, uma casa portuguesa!”
Mas o interessante no episódio passado com Mísia, é que a leitura actual desta fado, para uma parte significativa, importante e “marginal” da sociedade portuguesa – os Emigrantes – é outra. E a leitura que é feita, mais profunda, mais umbilical, mais terrena, muda a perspectiva da história do próprio tema. Como passados mais de 50 anos da escrita do mesmo, a dimensão memorialista, política e histórica passa a ser outra… vejam-se as reacções de alguns emigrantes presentes no concerto:
“Caiu muito mal na comunidade. Todos os emigrantes ficaram estupefactos, porque todos nós crescemos numa casa assim. Ao criticar essa canção, criticou a casa de todos nós e as nossas origens.” – Armando Lopes Martins, que chega a Argentina no ano em que o fado é composto.
“A minha mãe ouvia ‘Uma casa portuguesa’ e chorava. Vivíamos numa casa muito humilde, alugada. Não tínhamos nada no bolso. O meu pai esforçava-se dia e noite para trazer o pão para casa, como diz a letra”, recorda. “Essa canção era, na época, o nosso vínculo com Portugal”.
Se para muitos – posso estar a ser redutor, mas atrevo-me a dizer burgueses, citadinos e instalados – este fado é salazarista, miserabilista e odioso, para tantos outros ele traduz – ou será reconstrói? - a memória e a história das suas infâncias e vidas. Se tantos vêem neste tema a propaganda cinzenta de outros tempos, outros tantos vêem a descrição da realidade que conheceram, o resumo de suas vidas. O modo de vida que descreve o tema levou-os até ali, sem amarguras – deduzo do que li -, sem intelectualizações ou politizações, à maior sala de espectáculos da América Latina (e a terceira no mundo) para um (re)encontro com Portugal. Uma catarse?
Mísia não terá percebido – ou pensava que a sala se enchia apenas com argentinos? – que o Centro Cultural Kirchner de Buenos era Uma casa portuguesa!
(P.S. Basta atender que um dos maiores sucessos cinematograficos nacionais - A Gaiola Dourada - tinha como música de apresentação Uma Casa Portuguesa. Um filme de um filho de emigrantes sobre emigrantes.)

sábado, abril 29, 2006


Dei uma saltada até ao site da Mísia - http://www.misia-online.com/ - e descobri este texto cheio de verdades e de emoção. Refresca o ânimo de quem é português e de quem ama o fado. Boa Mísia!
O "Fadinho" de Paulo Cunha e Silva
Por Mísia - Público 13.01.2004
Acho chocante a maneira como Paulo Cunha e Silva (P.C.S.), director do Instituto das Artes (IA) se refere ao fado na sua recente entrevista a este jornal citando-o como exemplo de um estereótipo redutor da nossa identidade cultural no estrangeiro. Pela responsabilidade do cargo que ocupa, penso que deveria ter evitado a sobranceria da generalização. Não conheço, e dificilmente imagino, um agente cultural de outro país - numa declaração pública de intenções e não falando dos seus gostos pessoais, irrelevantes neste contexto - referindo-se repetidamente de forma desprestigiante a uma das poucas músicas urbanas europeias que, pela sua beleza e não por ser "de Portugal", representaria uma mais-valia para qualquer país, sobretudo aquele onde este senhor exerce as suas funções.
Para nos transmitir a sua ideologia não era necessário escolher uma disciplina artística como vítima. De nada serve continuarmos a invocar a nossa pequenez periférica quando comparados com outros que não escondem a sua diferenciação cultural sem por isso temerem a demissão da contemporaneidade e do cosmopolitismo.
Da mesma maneira que "não nos devemos preocupar pelo facto de na arquitectura do Siza não existir a bandeira portuguesa e dos filmes do Manoel de Oliveira não serem à volta do fado", é decepcionante que pelo facto de no fado usarmos um instrumento de trabalho que tem uma identidade não sermos uma vez mais considerados protagonistas culturais válidos - desta vez expulsos do paradisíaco "Alentejo" de P.C.S. Trabalhar com uma disciplina com identidade cultural não significa necessariamente a procura de uma especificidade étnica, de uma oficialização artística nem um pós-nacionalismo.
Ostracizar paranoicamente durante anos esta expressão artística, como se tem feito desde o 25 de Abril, é um integrismo míope e em grande parte responsável pela ausência de condições para uma autoria e criação de projectos interessantes e interdisciplinares nesta área. É por este tipo de comportamento - e não por causa do fado - que Portugal é um país triste. Porque é preciso uma lei para obrigar os portugueses a ouvirem a sua música de qualidade nas rádios, porque os nossos maiores escritores têm agentes literários estrangeiros, porque Carlos Paredes nunca teve um país à altura da sua genialidade, porque existe um snobismo cultural digno de uma república bananeira, porque demasiadas vozes do novo fado tiveram de emigrar discograficamente, porque ninguém aqui quis a Cesária Évora e agora todos a adoram, porque o Porto 2001 não conseguiu criar públicos, porque este país está bigbrotherizado culturalmente, porque não se vêem bichas nos museus e porque, claro, agora é João César Monteiro até enjoar.
Como me disse uma artista estrangeirada: prefiro pensar "o Portugal" do cinema, dos livros, da música a partir doutro país. Eles lá envergonham-se de nós... E eu acrescentaria que Portugal é um país triste porque os seus artistas têm muitas vezes de ir para longe para o amar e sentir saudades.
Fado, futebol e vinho do Porto. O que me incomoda neste tríptico da culpabilidade é que no primeiro caso, a música, a poesia e os intérpretes são elementos que configuram um dos universos em que Paulo Cunha e Silva trabalha. Isso deveria ter-lhe inspirado mais contenção e respeito. Como se pretende assim ultrapassar "o nível de desconfiança entre criadores e o Estado"? Ou talvez nós - os do fado - não sejamos criadores, não precisemos da linha de apoio à internacionalização? Poderemos sempre recorrer à linha de apoio à vítima, não é verdade?... Deixa-se "ad nauseam" o "triste fadinho" de lado pois ele exporta-se sozinho, como até agora acontece... correndo o risco de o tornar cada vez mais triste e mais fadinho. Como é possível que alguém que dirige um Instituto das Artes em 2004 não tenha uma opinião mais esclarecida e menos estereotipada?
Eu sou bloquista, do Porto e cosmopolita. Gosto das fotografias da Sophie Calle, das esculturas da Louise Bourgeois, gosto de tremoços e também de saké. Conheço os filmes do Tarkovsky, leio Kawabata e Paulo José Miranda. Adoro o Kiasma Museum em Helsínquia! Gostaria de cantar o fado de Annlee (a personagem manga do Pierre Huyghe e do Parreno) e não gosto nada de sardinhas! Quando me dá, canto fado vadio na Tasca do Careca, outras vezes no Town Hall em Nova Iorque. Fado tocado pela Maria João Pires, fado que o Bill T. Jones dança, Patrice Leconte filma e Isabelle Huppert recita. Sem nenhuma linha de apoio a não ser a linha dos meus cosméticos. Sou um bom exemplo dos muitos fados que o fado contém e de quão longe se pode estar de uma "arte oficial portuguesa".
O Governo francês condecora fadistas... e um representante oficial da cultura do meu país, onde vivo e pago impostos, fala assim? De uma música que traz aos teatros no estrangeiro turmas de alunos que estudam a nossa língua e literatura?
Camané e Kátia Guerreiro cantam no Théatre de la Ville em Paris, Mariza ganha o Prémio BBC, nos auditórios das universidades nos Estados Unidos, no festival de Avignon, em Moscovo, ouvem-se fados com palavras de Saramago, Agustina Bessa-Luís, Vasco Graça Moura. Estamos assim a afirmar nossa presença cultural no estrangeiro de uma forma local/universal e... contemporânea. E não é por ser portuguesa que esta música faz parte da programação desses espaços mas sim pela sua beleza e força devastadora. Se P.C.S. é insensível a esta realidade, pelo menos não a desfigure.
Apesar de não ser cosmopolita (que cidade portuguesa o é?), o fado pode dialogar e inspirar outras disciplinas, outros criadores de outras culturas. Por que continuam a pensá-lo como "uma casa portuguesa" a contrapor a "uma casa do mundo"? Até um turista do Bairro Alto sabe que já não é assim. Há muitos fados no fado. Bastaria a P.C.S. ter estado atento à programação da Culturgest ou do CCB.
Sakamoto, Gilbert & George, Adriana Calcanhotto, Lipovetsky e uma lista interminável interessam-se por esta música, longe de uma atitude paternalista ou populista. O fado é a assimilação de um encontro de culturas, um exemplo de globalização "avant la lettre". Auto-regenera-se continuamente. Tem um universo tão complexo e cheio de extremos como qualquer outra arte performativa. Pode também ser contemporâneo e um interessante ponto de partida para habitar o mundo - em Alfama e/ou em Berlim.

segunda-feira, outubro 31, 2005


Quinta-feira, dia 27 de Outubro, fui visitar o mais belo jazigo cultural de Portugal, que se encontrava de portas abertas para receber o primeiro de dois concertos da fadista Mísia. Falo pois do Teatro Nacional D. Maria II, que tem como coveiro principal António Lagarto.
Confesso que desconhecia, de todo, o trabalho de Mísia. Fui ver o espectáculo porque, primeiro, sou um grande apaixonado por fado e por poesia. Depois, porque sabia que ia estar presente a bela e sofisticada actriz francesa Fanny Ardant. E, por último, porque ninguém fica indeferente a Mísia, mais não seja pela sua figura "exótica" e fora do comum.
Cheguei a horas e, primeira das surpresas, fiquei surpreendido pela quantidade de caras famosas e famosinhas que lá se encontravam. Carrilho e Bárbara, Francisco Louça, caras do PS, Eduardo Prado Coelho, Fernanda Lapa e Fernanda Montemor, Ana de Sousa Dias, Maria João Seixas, Lurdes Norberto, Lia Gama, o grande poeta (ah, ah, ah) Tito Livio, Celeste Rodrigues e muitas outras caras que de momento não me recordo.
Pensei cá para comigo - "Bolas, que a Mísia deve ser mesmo muito boa... tanta gente, não é costume."
Entrei na sala. Lá estava a Sala Garrett com a sua mediana opulência e o seu cheirinho a mofo. Acenos para ali, beijinhos para acolá, todos se foram acomodando na plateia e nos camarotes. A sala estava composta.
Com um atraso algo longo, os músicos entram no palco onde uma tela projectava uma imagem fixa de uma cama com um telefone vermelho por cima da colcha. Estavamos num quarto de hotel.
Da afinação, um a um, dos instrumentos, começa a sair a primeira melodia da noite. E eis que entra Mísia, bonita, vestindo uma saia-casaco negro.
Quando estava prestes a bater palmas pela sua entrada, eis que não se ouve nada... nem uma palminha, nem um cochicho.... nada. Ter entrado ou não em palco era a mesmíssima coisa. Foi a segunda surpresa da noite.
Confesso que acho que nem ouvi bem a primeira música. Fiquei a matutar naquilo. Então mas que raio. Entra uma artista em palco e nem um espirro se ouve. Fiquei incomodado e gelado.
Mas as músicas e as conversas foram-se desenrolando e passando e eu abismado com a capacidade vocal de Mísia, o seu sentido de humor, a sua beleza em palco. Fados, boleros, tangos, foi tudo quanto se ouviu no concerto.
Como prelúdio de cada música, Mísia contava uma pequena história sobre o hóspede do "Drama Box Hotel", e como era o seu quarto. Um mimo.
Após duas músicas, Mísia anuncia Fanny Ardant. Eu nem coloquei as mãos a jeito para a saudar, como havia feito quando a fadista entrou em palco. Surpresa número três.... eis que a sala em peso começa toda numa histeria de palmas e de bravos. Pensei, novamente, para mim - "Mas que raio, esta gente tá parva? Quer dizer, entra-me a artista principal em palco e ninguém mexe uma palha; entra uma artista convidada (que podia ser a Ardant como outra qualquer) e desata tudo aos bravos". Só depois entendi. A sala estava inundada de cagões e projectos a cagões. Que estupidez a minha. Então não haviam de bater palmas a uma actriz francesa, de França, que vem declamar um poema de Vasco Graça Moura e ainda por cima no Teatro Nacional D. Maria II. Até parecia mal.
Enfim... ainda sou muito ingénuo nestas coisas.
A pequena declamou, lá se foi embora e instalou-se no camarote em frente ao do Carrilho. O que a Mísia faz para obrigar a Ardant a não tirar os olhos do palco... se olhasse em frente via o Carrilho, para baixo via o Eduardo Prado Coelho e a Maria João Seixas, ao lado o Tito Livio... perante tal horror, só restava mesmo à Fanny olhar para o palco.
E o concerto lá continou. Espantoso, cheio de surpresas. Eu cada vez mais boquiaberto pelo "vozeirão" de Mísia e a excelência dos músicos.
O mesmo termina com o "Lágrima", de Amália Rodrigues, que Mísia diz ser o seu "fado fetish". Como eu a entendo.
As pessoas lá se levantaram, soltaram-se e bateram muitas palmas com alguns timidos bravos.
Conclusão do espectáculo: - Fados no Teatro Nacional, nunca mais. Ou é pelo "peso" da casa e de tudo o que ela representa ou é pelo público que lá vai, gelado, armados em parvos intelectuais e elitistas. Acho que por tudo isto o concerto não resultou como deveria ter resultado.
Em relação a Mísia, foi uma surpresa agradável. Adorei a postura e a voz. Adorei os seus boleros e os seus tangos. Se estivessemos 50 anos atrás no tempo e em Espanha, não teria existido Sarita Montiel mas sim a Mísia Montiel ou Sarita Mísia. Agora, em relação ao Fado, confesso que não fiquei fã. Não me emocionaram nem me tocaram de qualquer forma. O porquê, não sei. A Mísia tem voz e postura. Os poemas, na sua maioria, são excelentes. Terei que ir vê-la de novo, com outro público e noutra casa. Só aí direi, realmente, se gosto ou não dela como fadista... para já, fica o benificio da dúvida.