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terça-feira, dezembro 06, 2011

O Cavaleiro da Dinamarca


Então a treva encheu-se de pequenos pontos brilhantes, avermelhados e vivos.

Eram os olhos dos lobos.

Cavaleiro ouvia-os moverem-se em leves passos sobre a neve, sentia a sua respiração ardente e ansiosa, adivinhava o branco cruel dos seus dentes agudos.

Em voz alta disse:

— Hoje é noite de trégua, noite de Natal.

E ao som destas palavras os olhos recuaram e desapareceram.

Mais adiante ouviu-se o ronco dum urso.

O Cavaleiro estacou a sua montada e a fera aproximou-se. Vinha de pé e pousou as patas da frente no pescoço do cavalo.

O homem ouviu-o respirar, sentiu o seu pêlo tocar-lhe a mão e viu a um palmo de si o brilho dos pequenos olhos ferozes.

E em voz alta disse:

— Hoje é noite de trégua, noite de Natal.

Então o bicho recuou pesadamente e grunhindo desapareceu.

E o Cavaleiro entre silêncio e treva continuou a caminhar para a frente.

Caminhava ao acaso, levado por pura esperança, pois nada via e nada ouvia. As ramagens roçavam-lhe a cara e caminhava sem norte e sem oriente.

O cavalo enterrava-se na neve e avançava muito devagar. Até que de repente parou. O homem tocou-o com as esporas mas ele continuou imóvel e hirto.

— Vou morrer esta noite — pensou o Cavaleiro —.

Então lembrou-se da grande noite azul de Jerusalém toda bordada de constelações. E lembrou-se de Baltasar, Gaspar e Melchior, que tinham lido no céu o seu caminho. O céu aqui era escuro, velado, pesado de silêncio. Nele não se ouvia nenhuma voz nem se via nenhum sinal. Mas foi em frente desse céu fechado e mudo que o Cavaleiro rezou.

Rezou a oração dos Anjos, o grande grito de alegria, de confiança e de aliança que numa noite antiquíssima tinha atravessado o céu transparente da Judeia. As palavras ergueram-se uma por uma no puro silêncio da neve:

— Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade.

Então na massa escura dos arvoredos começou ao longe a crescer uma pequena claridade.

— Deus seja bendito — murmurou o Cavaleiro —. Deve ser uma fogueira. Deve ser algum lenhador perdido como eu que acendeu uma fogueira. A minha reza foi ouvida. Junto dum lume e ao lado de outro homem poderei esperar pelo nascer do dia.

O cavalo relinchou. Também ele tinha visto a luz. E reunindo as suas forças, o homem e o animal recomeçaram a avançar.

A luz continuava a crescer e à medida que crescia, subindo do chão para o céu, ia tomando a forma dum cone.

Era um grande triângulo radioso cujo cimo subia mais alto do que todas as árvores.

Agora toda a floresta se iluminava. Os gelos brilhavam, a neve mostrava a sua brancura, o ar estava cheio de reflexos multicolores, grandes raios de luz passavam entre os troncos e as ramagens.

— Que maravilhosa fogueira — pensou o Cavaleiro —.

Nunca vi fogueira tão bela.

Mas quando chegou em frente da claridade viu que não era uma fogueira. Pois era ali a clareira de bétulas onde ficava a sua casa. E ao lado da casa, o grande abeto escuro, a maior árvore da floresta, estava coberta de luzes. Porque os anjos do Natal a tinham enfeitado com dezenas de pequeninas estrelas para guiar o Cavaleiro.

Esta história, levada de boca em boca, correu os países do Norte. E é por isso que na noite de Natal se iluminam os pinheiros."

Assim termina o livro O Cavaleiro da Dinamarca, de Sophia de Mello Breyner Andresen... o livro da minha vida.

segunda-feira, maio 01, 2006


Lisboa

Digo:
"Lisboa"
Quando atravesso - vinda do sul - o rio
E a cidade a que chego abre-se como se do meu nome nascesse
Abre-se e ergue-se em sua extensão nocturna
Em seu longo luzir de azul e rio
Em seu corpo amontoado de colinas -
Vejo-a melhor porque a digo
Tudo se mostra melhor porque digo
Tudo mostra melhor o seu estar e a sua carência
Porque digo
Lisboa com seu nome de ser e de não-ser
Com seus meandros de espanto insónia e lata
E seu secreto rebrilhar de coisa de teatro
Seu conivente sorrir de intriga e máscara
Enquanto o largo mar a Ocidente se dilata
Lisboa oscilando como uma grande barca
Lisboa cruelmente construída ao longo da sua própria ausência
Digo o nome da cidade
- Digo para ver

Sophia de Mello Breyner Andresen