sexta-feira, maio 27, 2005

Maria Rattazzi - Portugal de Relance - Carta Décima Quinta - Continuação

"Na casa de jantar, uma mesa de madeira ordinária, algumas cadeiras de palhinha e um guarda-louça envidraçado.

Na cozinha, alguns fogareiros de barro, tachos, também de barro, como em Espanha; poucos utensílios, mas uma pia (espécie de bacia de esgoto) onde se despejam as águas das lavagens. E se ela só servisse para isso!!!

O meu dever de historiadora, exacta e verídica, obrigar-me-ia a entrar em certos detalhes, capazes de fazer recuar o próprio Zola, se, francamente, eu me atrevesse a tanto. Prefiro enviar os meus leitores para o Balzac e Zola português, o sr. Eça de Queirós.

Exceptuando algumas casas particulares, não há fogões nos quartos. Não senti a falta deles porque não gosto de lume; mas muitos estrangeiros ouvi eu queixarem-se de não terem um simples braseiro para se aquecerem.

É verdade que se existissem fogões grande dificuldade haveria em alimentá-los, a menos que não servisse a mobília para combustível. Desconhece-se inteiramente em Portugal o uso da lenha e custa 300 réis cada quilo, o que torna o seu uso quase impossível para as bolsas menos abastadas.

Se muitas casas, mesmo os grandes hotéis, estão mobiladas de maneira que falta quase o indispensável, poucas há que não tenham capela. Entendamo-nos. Nos palácios a capela é quase uma igreja, como em Sintra no palácio de D. Fernando. Os proprietários assistem às cerimónias religiosas numa tribuna e o povo tem entrada por uma porta que dá para a rua.

Nas grandes casas destina-se a esse emprego um aposento qualquer, que se adorna com um altar, lampadários, imagens e grande profusão de ornatos dourados. Nas casas modestas a capela resume-se em uma espécie de armário envidraçado, colocado em cima de uma cómoda e que se abre sempre que se quer orar.

Entre o povo a capela resume-se a meia dúzia de registos emoldurados em caixilhos de madeira.

Sempre que o português muda de residência leva consigo os seus santinhos, no mesmo carro que o conduz a ele, à mulher, aos filhos, aos colchões e à modesta bagagem que possui.

As casas em Lisboa, como em todo o resto de Portugal, são habitadas, principalmente de Verão, por um enxame de baratas que à noite saem pelas fendas do sobrado, do tecto, das paredes, por todos os lados, enegrecendo as casas; verdadeira invasão que dura desde o anoitecer até de madrugada, mexendo, andando, formigando... Disseram-me que todos acabavam por habituar-se.

Eu não o pude conseguir!

Uma noite, fugi horrorizada do Hotel Gibraltar, convencida de que era inútil lutar, pois que quantas mais se matam mais aparecem.

Uma Saint Barthélemy de baratas traz no dia seguinte uma recrudescência de hereges, tanto que não duvidamos que as que sobrevivem à hecatombe vão chamar os vizinhos e conhecidos para as auxiliar. As baratas são uns animaizinhos muito feios, que atingem o tamanho de um besouro adulto; o que vale é que são quase inofensivas."
Continua

3 comentários:

Anónimo disse...

Depois deste estive a ler também os excertos anteriores do mesmo livro. São crónicas extremamente interessantes. Mais um livro para eu comprar...

Gustavo Monteiro de Almeida disse...

É bastante interessante a referência, quase constante, às famosas cadeiras de palhinha.

Bem a propósito: Na passada segunda-feira não pude deixar de me lembrar da referência que Maria Rattazzi lhes fez, ao entrar na sede de uma Academia portuguesa já com alguns anos de história... Todas as cadeiras eram de palhinha, encontrando-se algumas delas já com problemas estruturais... Para ser mais exacto, andei a ver em qual delas melhor poderia permanecer sentado sem problemas de me enfiar por ela abaixo... (espero que as outras pessoas não tenham notado o meu constrangimento...) (foi um velado fartote de rir para mim mesmo).

Quanto às baratas. Ai de alguma delas que um dia entre numa casa minha ou da minha família. Graças a Deus nesse campo evoluímos bastante. Há, apesar de tudo, mais cuidado com a limpeza. Mas as nossas ruas...

No que concerne às capelas e oratórios privativos, sim este povo era e continua a ser muito devoto. Por vezes em demasia, pois esquece os mandamentos quando se relaciona com os outros e corre a rezar e a pedir perdão depois de cometer algum pecado... Vivam as indulgências...!!

Gustavo Monteiro de Almeida disse...

Já agora... Achei engraçada a referência que é feita a Eça de Queirós como o Zola português. Não sei exactamente em que ano esta carta foi redigida, mas, a breve trecho, acabou por ser Abel Botelho o escritor português considerado como o exponente do naturalismo em Portugal, na esteira de Emile Zola. É exemplo da sua obra literária, cuja técnica descritiva subtilmente foi afastada por Maria Rattazzi, a descrição, em «Amanhã» (1901),de um lugar de encontro de socialistas num último andar de um edifício operário de Lisboa, onde abundavam baratas e outros bicharocos mais... Creio que alí, nem cadeiras de palinha existiam... Ou, melhor ainda, de um bairro operário no vale de Chelas, de um palacete quase abandonado em Xabregas ou de uma decadante casa senhorial para os lados de Santos-o-Novo, creio.