Urbano – As Duas Caras
Já esperavas. Já
esperavas, Urbano. Já esperavas, Urbano Tavares Rodrigues. Pediu-me um amigo
íntimo (dos dois) que te poupasse. Sempre tinhas sido o “nosso” Urbano. Mas tu,
o “nosso”, esqueceste-te de quem te estimou e rodeou de carinho a vida inteira.
Tu esqueceste-te dos teus amigos para endeusares os teus colegas do MUTI, do “PC”
e indústrias correlativas. Tu provocaste-me, chamando fascista ao jornal onde
trabalho, conhecendo-me há mais de vinte anos, tendo acompanhado a minha luta.
Sabias, pois, que eu não me calaria. E, afinal, não tenho muito para dizer. Ou
melhor. Tenho, mas não digo. Contendo-me, para te revelar como “revolucionário”,
em contar a tua mania das dedicatórias, a tua colaboração íntima e ternurenta
(és um poço de ternura) com altas figuras do regime deposto e com os
escritores, teus colegas, da direita. Ser da direita não envergonha ninguém.
Mas é preciso e necessário ter coragem para sê-lo. Navegar entre duas águas é
que não. Sabes a que me refiro.
HOMENAGEM A SALAZAR
Tu, Urbano, um homem “sempre,
sempre ao lado da esquerda”, não colaboraste na Távola Redonda e no Graal dirigidos
por António Manuel Couto Viana, esse, sim, um homem de direita? Até fazia parte
do Conselho de Redacção o Goulart Nogueira, que também não enjeita a cor política
que prefere. Ora ninguém, ao que me parece, te obrigou a colaborar. Foste
voluntário.
Mais. Gabavas-te a esses
teus amigos (és capaz de agora não lhes falar) de Salazar ter prestado
homenagem à tua prosa. E fala-se muito (infelizmente não tenho o livro em meu
poder) duma dedicatória tua feita ao prof. Marcelo Caetano. Acho que esse livro
anda por Coimbra. Mas tu deves saber.
A respeito de
dedicatórias, lembro-me das tuas “Jornadas na Europa”, dedicadas a Marcelo
Matias! A Marcelo Matias, Urbano, que não era, precisamente, o expoente máximo
da esquerda portuguesa…
Pois, falemos de
dedicatórias. Tenho na minha frente (eu ia lá perder essa preciosidade!), as Jornadas no Oriente, editadas pela
Bertrand em 1956. Com uma dedicatória linda como todas as que me fizeste nos
livros que me ofereceste, mas “dedicada” a obra ao “comandante Sarmento
Rodrigues” (também será da esquerda?) e à guarnição do ‘Bartolomeu Dias’ na Volta
da Índia”.
AO LADO DOS SOLDADOS…
RAPAGÕES VIRIS…
Falemos, Urbano, violeta
deliquescente, no capítulo VI do mesmo livro. Aqui vai:
“… A presença portuguesa
em Goa, no passado e no presente, fez-me vibrar, irresistível, emocional,
instintivamente. Ao lado dos nossos soldados, que aqui velam pela continuidade
de Portugal em Goa, eu sentir-me-ia honrado, feliz, por dar a este solo
ardente, se preciso fosse, o sangue que me corria nas veias. Aqui redescobri,
não com a mente, que de há muito o sabia, mas com os nervos, que Portugal não é
na verdade europeu, senão verdadeiramente universal.”
E mais adiante:
“… Rapagões azambrados de
Trás-os-Montes, toscos e viris como a rocha e a torga das suas serras, grossos
e entroncados pegureiros beirões, lépidos estremenhos maliciosos, esbeltos e
aquilinos alentejanos meditativos, todos eles, soldados de Portugal, aqui
estão, na brecha, dispostos a lutar ao sol pela Pátria e a morrer, se lhes
couber a sorte, no caminho da honra. E não levam na boca nem o ódio, nem o
insulto, incompatíveis com o verdadeiro valor.”
Não posso deixar de
comentar. Quando Salazar enviou o célebre telegrama mandando que morressem para
salvar Goa, não me lembro, Urbano, de teres concordado com ele. Todos nós
(recordas-te?) achámos que Goa devia ser livre. E tu não vieste a público
brandindo o teu livro e oferecendo-te para “ali derramares o sangue que te
corre nas veias”. E aplaudiste os “rapagões azambrados de Trás-os-Montes, os aquilinos
alentejanos, os lépidos estremenhos maliciosos”, etc., por lá não terem
morrido. Quantas palavras tens, Urbano Tavares Rodrigues.
EM QUE FRONTEIRA ESTÁS?
Estou magoada, Fui muito
amiga do teu pai, que hoje choraria por te ver nesta coluna de falsos
revolucionários. Mas não te posso poupar. Aliás, aqueles que aqui descrevo são
quase todos amigos. Ou antes. Eram-no até ao 25 de Abril, que os revelou, que
nos revelou a todos. Aos nossos olhos e aos olhos de todo o mundo. Quem era
cobarde, mostrou-o com demasiada evidência. Quem era valente também não o
escondeu. Diz-me, Urbano, em que fronteira estás?
Voltemos às Jornadas no Oriente.
Continuamos a ler o teu
livro que eu não vendia por uma fortuna e chegamos à página 92, quando tu falas
da “Homenagem à memória dos heróis de Dadrá”:
“… Foi colocada mais uma
lápide alusiva à morte heroica de Aniceto do Rosário e de António Fernandes.
Aqui ouvi da boca do povo, repetida com emoção, a frase que Aniceto do Rosário
disse ao governador de Damão, quando, pela última vez, este, apreensivo, o
visitou no seu posto: ‘Parta V. Excelência descansado que, haja o que houver,
não deixarei mal a bandeira de Portugal’. Palavras belas! Mais belo ainda foi o
gesto que as confirmou. Aniceto do Rosário escolheu a morte, com plena
consciência do seu acto. Natureza simples, etc., etc.”
E ainda:
“A expressão dos seus
rostos não enganava. São homens prontos a dar a vida por uma realidade
abstracta que os embriga e os transcende: Portugal.
“Diante do monumento aos
heróis, perante a heterogénea população de Damão, ali reunida, sob os coqueiros
e as mangueiras da praça, com o sol a pino, ardendo, rútilo, no céu lavado da
Índia, houve uma cerimónia breve, mas impressionante.
Dois pelotões de
Caçadores, marciais, de capacetes fúlgidos, um pelotão da Polícia, não menos
aprumado, de farda de caqui, e um castelo da Mocidade formaram o largo. Em
frente do monumento postaram-se os guarda-marinhas, de espada nua. Um deles,
quando cessaram os últimos acordes do hino nacional, depôs um ramo de flores do
pedestal e dirigiu uma rápida alocução ao povo de Damão, exaltando a sua
lealdade e a sua coragem, traduzidas e simbolizadas no holocausto de Aniceto do
Rosário e de António Fernandes.”
---
Pois, Urbano, tu cantaste
a homenagem aos heróis de Dadrá (sendo um deles da PIDE) com um nacionalismo,
um entusiasmo, um amor a Portugal Colonial por nenhum outro igualado. Consultando
os jornais da época, não se encontra amor mais extremado, mais vontade de ali
morrer, mais desejo de ali “deixar correr, em defesa de Portugal, o sangue das
veias.”
Para um vulto hoje
lutador pela independência dos povos colonizados, um homem tão perseguido pela
PIDE, um homem que tanto sofreu com os rigores do antigo regime, deves
confessar que o teu entusiasmo pela colonização da Índia te deixa ficar um
pouco mal.
TINHAS MUITO MAU HÁLITO
Foste um homem de
esquerda. Mas não muito. Eu vi. Eu assisti à tua chegada a Portugal, vindo de Poitiers
ou Montpellier ou coisa parecida, magro, moreno, olho quebrado, oferecendo o
sangue das tuas veias a Portugal e a todas nós, mulheres do teu país. Tinhas uma
fragilidade que aproximava, uma fragilidade que provocava da nossa parte a tal
necessidade de te proteger. Usavas e abusavas disso. Embora eu não estivesse
imune a esse género de homem (elas, bem pelo contrário…), a ti, Urbano, nunca
me foi difícil resistir. Eras um homem sem espinha dorsal e… tinhas muito mau
hálito.
O TRISTE CASO DA
SOCIEDADE PORTUGUESA DE ESCRITORES
O que, verdadeiramente,
começou a afastar-me de ti foi a atitude que tomaste quando do célebre e triste
caso da Sociedade Portuguesa de Escritores.
Nessa altura, eu tomei
decididamente uma atitude, decididamente deixei de falar a quem devia deixar de
falar (não nomeio, porque hoje está vencido e eu não ataco vencidos) e tu
continuavas terníssimo para com essa criatura. Um dia, na praia, no Algarve, na
areia, muito ao fim da tarde, com a tua mulher, grande escritora e digníssima
mulher, comentámos o facto. Eu apontava-te o romance que esse escritor (dum
escritor se tratava) acabara de escrever pondo de rastos, enlameando, duas
presas políticas portuguesas, que tu conhecias, que eu conhecia, que a Maria
Judite conhecia. E eu explicava-te que não podia haver duas atitudes. Tua
Mulher concordava comigo. Mas tu, mexendo na areia, sorrindo tristemente,
explicavas que não te era possível tomar atitudes, cortar com essas pessoas.
Muito longa seria esta história, mas como disse, não quero tocar mais no
assunto. Só quero mostrar que foste sempre assim. Bem com uns e com outros.
Indignado nas reuniões de escritores e afável e ternurento quando encontravas
na rua as pessoas a quem os escritores não falavam.
VIOLETA ROXA… E BRANCA
Duas caras, Urbano.
Violeta roxa… e branca, no mesmo pé. Foste sempre um homem protegido. Tiveste
sempre muito trabalho. Colaboraste assiduamente no SNI e, não quero jurar, mas
julgo que recebeste mesmo um prémio da dita organização.
Eras o nosso Urbano
nacional. As esquerdas louvavam-te e as direitas… sorriam-te.
Agora, passado o 25 de
Abril, não me consta que tivesses ido visitar à prisão o almirante Sarmento
Rodrigues que cantaste tão ardentemente nas Jornadas.
Não. Não ouvi dizer que
lá tivesses ido. E essas coisas sabem-se sempre…
Quando frequentavas a
casa do Augusto de Castro, como te derretias com o dono da casa e seus
convidados. Que não eram, note-se, figuras de esquerda. Oh, não!
A tua indignação contra
os jornais independentes não tem limites. “Fascista e fascizante” foi o menos
que chamaste a este jornal que também dirijo. Tu, Urbano, em consciência, sem
ser para agradar aos teus novos senhores, podias chamar-me fascista ou
fascizante? Podias?
Já depois do 25 de Abril,
já depois da revolução que mostrou as nossas verdadeiras caras (como, por
exemplo, a tua e a minha) na Galeria de S. Mamede, em noite de exposição, pedias
a um canto, com a tua voz mais macia, mais aveludada, à Manuela de Azevedo que
servisse de empenho para o teu irmão Miguel (que tinha chegado ou estava a
chegar) entrar para o Diário de Notícias.
A Manuela de Azevedo não é pêcê, mas servia-te. Influenciaria o Ribeiro dos
Santos e arranjava-se um trabalhinho para lá infiltrar o Miguel, arcanjo de que
também me ocuparei nestas colunas. Não é preciso ir muito longe para saber a
história do mano. Senti-a na pele. Fui vítima da “generosidade e camaradagem” do
mano Miguel. Mas, adiante. Não é dele que se trata.
“COMUNISTAS, ESSA
POPULAÇA HEDIONDA”…
Não posso acabar sem me
referir à tua primeira edição, de A Porta
dos Limites, feita pela empresa do Diário
de Notícias, em 1952. A 2ª edição, feita pela Arcádia, é de 1960. Nesta suprimiste
a novela “Se Nós não Sabemos!...” É ambientada em Espanha e trata da guerra
civil de 1936-39, numa perspectiva pró-franquista. Eis dois trechos
significativos:
“… eu visionava os campos
de Aragão, escorrendo sangue; as estradas desertas, onde se erguiam os
letreiros do medo e do espanto, por onde passavam camiões carregados de
espingardas e onde soava a risada suja e cruel da “milícia roja”: via as “milicianas”,
apeando-se dos carros da morte para desfeitearem os feridos; e relembrava as
notícias que então lera num grande assombro: o julgamento desse jovem
inspirado, figura de lenda, José António Primo de Rivera; o “bluff” de Sevilha,
as batalhas, Talavera, a gesta épica de Toledo, os bombardeamentos atrozes de
Barcelona” (páginas 149-150).
“… Não eram os idealistas
que se batiam pela legalidade democrática (como também havia) que violavam e fuzilavam
a todas as horas do dia luminoso: eram os voluntários
comunistas, a populaça hedionda, escumante, cega, vingativa, que exigia a
desforra da longa sujeição e crucificava os pálidos senhoritos, culpados de haverem nascido do outro lado. E vira mais:
vira crianças empaladas nas grades dos jardins senhoriais, à porta das cidades
sarracenas que eram a graça e o sorriso de Espanha: vira-lhes os corpos
pequeninos roxos e descompostos; e vira o sangue que tinha pingado, que se
apagaria amanhã daquela terra, mas dos seus olhos nunca mais” (páginas
150-151).
A respeito desta novela,
Urbano, o Carlos de Oliveira disse-te: “Aquilo até tem piada, mas não se
compreende.” E tu, sempre conciliador, respondeste; “Sabe, aquilo é uma
história que me contaram em Espanha, e ao contrário, mas se a publicasse, a
censura cortava-ma.”
Para quem escrevias,
Urbano?
Afinal razão tem um amigo
meu que me disse ultimamente que andavas com a cara de “lâmpada fundida”.
Quanto ao Romanceiro Português, de 1956, um
antologia editada pela Campanha Nacional de Educação de Adultos, o volume XXX
da Colecção Educativa traz, à entrada, antes do prefácio, esta epígrafe:
“É certo que a humanidade
acaba sempre por encontrar o seu caminho. Não está aí o problema. O problema está
em que o encontre limpo de ruínas e isento de sofrimentos sem conta e sem par
que são o preço por demais elevado de algumas viragens na história – SALAZAR”
Foste tu quem o citou,
Urbano. Esta é a tua obra.
“TENS O LINFÁTICO ASPECTO
DUMA CAMÉLIA MELADA”
Tu agora és PC convicto.
Que assim continues é o que desejo, porque ao menos sempre tinhas tomado uma
atitude definitiva. Mas se o PC se apaga?
Adeus, suave Urbano,
nosso antigo Urbano nacional.
Conhecendo-te como me
conheces, deves ter visto como te poupei. Hoje estou muito generosa.
Se tens memória, Urbano,
que julgo não tens, já te esqueceste,
certamente, dos serões em minha casa, quando procuravas intensamente agradar ao
Eugénio Montes, meu amigo antigo. Não só procuravas a sua influência para ti,
como a procuravas para os outros. Lembro-me, como se fosse hoje: eu morava
naquela casita da Rua da Artilharia Um, que tinha um pé de glicínia no quintal,
e tu lá levaste um poeta chatíssimo para que o Eugénio o ouvisse e
apadrinhasse. O poeta lia os seus poemas e o Eugénio, maçado, dizia: “Adelante,
adelante”. Foi um horror. Claro que o poeta que levaras pela mão ficou sem
prefácio, a grande amizade do Eugénio perdoou o serão frustrado, mas tu ficaste
muito triste.
O Eugénio Montes
continua, já lá vão vinte e cinco anos, a ser um dos teus maiores amigos e
continua da direita. E tu?
“Tens o linfático aspecto
duma camélia melada”.
Vera Lagoa, Revolucionários que eu conheci, edição
Intervenção, 1977
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