terça-feira, julho 12, 2011

O dia em que eu... ofereci rosas a Amália Rodrigues [crónica de Rui Miguel Abreu]


Nesta crónica semanal, Rui Miguel Abreu recorda hoje o encontro com Amália Rodrigues. "Como poderia eu ser um mito se fui criada em Alcântara?", disse-lhe a lenda.

Na reta final de 1990, chegou à redação a notícia de que estaria para sair um novo álbum de Amália. À época, os meus gostos musicais oscilavam ao sabor de uma curiosidade que parecia ter o tamanho do mundo e que me permitia equilibrar De La Soul e Lou Reed, alguns primeiros e tímidos passos nos domínios do jazz, as vanguardas que passavam pela Gulbenkian e os GNR ou Mão Morta e Carlos Paredes... Na minha cabeça, havia mais pontos em comum entre todas essas coordenadas dispersas do que os compêndios revelavam. O meu radar, no entanto, não captava sinal algum vindo dos terrenos do fado que entendia ser a música dos meus pais e por isso mesmo algo a evitar a todo o custo.

Não consigo, por isso mesmo, recordar o que me levou a dar seguimento ao impulso de requerer uma entrevista com Amália Rodrigues, logo que a edição de Obsessão foi anunciada. Quando se abre uma revista como a BLITZ e se leem entrevistas com os Arctic Monkeys ou Bill Callahan ou José Mário Branco é importante perceber que nem sempre estas peças nascem de disponibilidades anunciadas pelas editoras. Muitas vezes, é do lado da redacão que nasce o desafio de ir ao encontro de alguns artistas e nem sempre esse desafio é coincidente com a agenda promocional.
 
 

A capa do jornal A Capital, de 19 de novembro de 1990

Lembro-me, no caso de Amália, que a EMI-Valentim de Carvalho não tinha na altura grandes acções de promoção planeadas e que a minha solicitação teve que ser submetida à aprovação da própria artista. Amália era no entanto uma pessoa extremamente aberta e generosa que só recusava entrevistas em caso de manifesta indisponibilidade - física ou emocional. Na entrevista de duas páginas, com direito a chamada de capa, que se publicou a 19 de Novembro de 1990, uma segunda-feira, e que agora fui reler, menciona-se como Amália ainda recebeu duas meninas de uma escola vizinha antes de se sentar na sala para responder às minhas perguntas. A maior estrela do nosso país vivia na Rua de São Bento e parecia manter as portas abertas por puro respeito a quem dela gostava. Muita coisa mudou desde então.

Escrevia eu que o fado não era declaradamente a minha praia. Continua a não ser. Mas uns anos antes desta entrevista, a devoção profunda de uma incrível figura pop nacional tinha-me despertado a curiosidade com uma leitura de "Povo que Lavas no Rio" que ainda hoje soa totalmente reverente e apaixonada. E talvez tenha sido essa a semente da vontade de entrevistar Amália. Lembro-me aliás da breve sintonia doméstica com os meus pais a propósito de António Variações que só se terá voltado a repetir musicalmente quando os Los Lobos vestiram a pele de Ritchie Valens e levaram "La Bamba" aos tops de todo o mundo. E se me é permitido o parêntesis, menos sucesso tiveram as tentativas de conversão dos meus pais com a valsa "Golden Brown" dos Stranglers (e tivesse eu entendido a letra na altura e nunca lhes teria mostrado a canção) ou as guitarras luminosas de "Cemetery Gates" dos Smiths... Amália, no entanto, ficaria a partir daqui um fascínio comum.

Fiz alguma cerimónia com esta entrevista. Antes de me dirigir com o fotógrafo António José à casa de Amália Rodrigues em São Bento, passei numa pequena florista do Chiado e comprei rosas para oferecer à cantora. Um gesto que não voltei a repetir com qualquer outro artista que tenha entrevistado, mas que me pareceu perfeitamente natural naquele momento. O fado podia não ser a minha praia, mas isso não me impedia de ter uma noção clara da grandiosidade da artista que me preparava para entrevistar. Na peça que agora reli, não poupei nas palavras e comecei logo por comparar Amália a um "mito vivo". A resposta da mulher de Com Que Voz foi extraordinária: "Como poderia eu ser um mito se fui criada em Alcântara?" De facto...

A entrevista está cheia de frases extraordinárias, cada uma delas um título em potência, provas de uma sabedoria profunda e de um discurso de autenticidade que só muito raramente encontrei noutros artistas portugueses. JP Simões ou Rui Reininho conseguem também ter essa profusão de ideias impressas em frases que por vezes têm a espessura de tratados, mas que são só meia dúzia de palavras atiradas ao vento. Outros artistas, igualmente inteligentes, precisam por vezes de uma entrevista inteira para fazer valer um ponto. Mas Amália tinha essa relação de profundo respeito pelas palavras que nasciam dentro dela como a água numa fonte: puras e inalteradas por qualquer pose, programa ou estratégia.

Pouco tempo depois desta entrevista, Amália cantou na Adega Machado, vizinha no Bairro Alto da redacção d'A Capital, e imagino que terá sido uma das últimas vezes que se apresentou numa casa de fados. Ao longo dos anos, esse é um dos três ou quatro concertos que tenho usado para desarmar amigos mais novos quando começamos com aqueles "duelos" amigáveis do "eu já vi x ao vivo e tu?". Normalmente, Tom Waits, Velvet Underground e Nirvana são golpes duros para os meus opositores nesses duelos, mas "Amália numa casa de fados do Bairro Alto" costuma ser uma estocada a que muito dificilmente se responde...

Houve uma frase que Amália proferiu nesta entrevista e que eu gravei na minha memória. Mais de duas décadas passadas, tinha dúvidas sobre se o tempo me teria levado a arredondar a frase, a alterá-la de alguma maneira, porque o tempo faz dessas coisas: tanto encaixa as memórias na nossa vida como o contrário e às vezes recordamos coisas não como elas aconteceram, mas como gostaríamos que tivessem acontecido. Recordava que Amália, apontando para um retrato que tinha na sua sala, me tinha dito que os olhos daquela pintura não eram os seus, mas os do fado. Vinte anos passados, o arquivo digital d'A Capital revela-me que a minha memória preservou a verdade dessa frase: "Como vê, aqueles olhos são os da cara, mas o olhar, esse é o da alma. Tenho olhos de fado". E por isso é que tenho tantas dificuldades em gostar de outra fadista como gosto de Amália.

Crónica de Rui Miguel Abreu

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