Todos os dias são iguais a outros dias. Tirando o fim-de-semana que é sempre igual a outros fins-de-semana.
Acorda pelas 8.30 horas. Mas não se levanta. Fica no quente dos lençóis meia hora, pedindo que o dia de hoje seja diferente aos outros dias sempre iguais.
Levanta-se finalmente às 9 horas. Veste o roupão. Passa pela casa de banho. Entra. Sai. Vai à sala, liga o computador, olha pela janela. O mesmo prédio em frente, com as mesmas persianas fechadas, excepção das que estão já levantadas. O mesmo jardim com a mesma igreja. Tudo igual, como num filme em pause.
Dirige-se à cozinha. O mesmo ritual de sempre. Água na chaleira para um chá preto. Um pão trazido pelo padeiro logo de manhãzinha com Becel Pro-Active, um iogurte de soja de morango porque a lactose, como outras coisas na sua vida, não tolera. A água ferve. Num copo alto de plástico amarelo mete o saco do chá, entorna a água e espera… espera que água cristalina se transforme em líquido acastanhado cafeínizado. Duas colheres e meia de açúcar. E pensa sempre: “não vou beber este copázio todo de chá”…
Pega em tudo e vai, como sempre, até ao computador que está na sala de jantar… ou será antes sala de computar? Jantares na sala são poucos… computação é bastante… sala de jantar computadora… assim é mais verdadeiro.
Dá a primeira mordidela no pão. Vê o e-mail. Nada de novo. Uma fotografia sem interesse, uns quantos anúncios de emprego que não o empregam, dois spams e, na lixeira, uns cinco e-mails de enlarge your penis ou get free V.I.A.G.R.A. Quanta preocupação fálica neste mundo. Chega a ficar comovido… mas não traumatizado. Primeiro gole no chá, primeira queimadela na língua. “Não vou beber este chá todo”, pensou.
Entra nas redes sociais. O moribundo HI5… o enérgico Facebook… viu as mensagens que tinha, jogou os jogos que o entretêm fastidiosamente. Abre o iogurte. Come o iogurte. Vai à janela e fuma um cigarro. “Como são boas as tonturas do primeiro cigarro do dia”, e ri-se.
Volta ao quarto e escolhe a roupa que cuidadosamente estende em cima da cama. E mais um cigarro, desta vez noutra janela, com outra vista. Prédios de lado e em frente e o Tejo a reflectir o Sol. Volta para dentro, vai à casa de banho, liga o aquecedor, põe a toalha sobre o banco, abre a água quente da banheira. Seguidamente despe-se, entra na banheira e injecta-se de água escaldante. “Fosse a vida sempre líquida e quente e seria tudo tão bom, tão fácil”, reflecte.
Após secar-se freneticamente com a toalha, veste os boxers ainda na casa de banho e sai maldizendo o frio até ao seu quarto. Atira a toalha para as cordas da roupa e… PAUSA… tudo se suspende porque nesse instante podem existir dois momentos instantes distintos: ou cai a toalha no chão, obrigando-o a ir até à varanda, dobrar-se, apanhar a toalha e estendê-la como deveria ser ou, se tiver sorte (“as coisas estúpidas para onde a sorte é chamada”, filosofa), a toalha fica nas cordas e tudo segue o seu ritmo normal.
Findo qualquer um destes instantes, o momento seguinte nunca é distinto. Volta para junto da cama, veste primeiro as meias, depois as calças, depois a t-shirt, ao mesmo tempo os sapatos e por fim a malha. Frente ao espelho ajeita o mal jeito do cabelo.
De novo na sala de jantar computadora pressiona F5, tudo faz refresh… tudo menos ele… uma ou outra coisa nova no ecrã, ou talvez não. Seja como for é indiferente. Volta ele para a janela, novo cigarro acesso e pensa: “Pronto, está tudo. E agora?”
1 comentário:
muito bom. perfeito retrato do urbano-depressivo moderno.
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