Penitencio-me, Sr. Dr. Nunca, eu deveria ter tido a veleidade de apontar o dedo a um bonzo intocável. Nos Dantas, nem pim
Carta ao Aristocrata da Cultura Luís Miguel Cintra
Venho com esta cartinha, Sr. Dr., pedir-lhe desculpa de mais uma vez o ter incomodado. Não era minha intenção, está bom de ver. Mas sabe, sou uma alma simples, vinda lá do Norte e carregando no lombo (do burro e não do “camelo”, Sr. Dr., que aqui para estes lados ele há mais é burros) a antiga “ignorância” e “incompetência” dos simples, assim a modos que uma Maria Papoila.
Carta ao Aristocrata da Cultura Luís Miguel Cintra
Venho com esta cartinha, Sr. Dr., pedir-lhe desculpa de mais uma vez o ter incomodado. Não era minha intenção, está bom de ver. Mas sabe, sou uma alma simples, vinda lá do Norte e carregando no lombo (do burro e não do “camelo”, Sr. Dr., que aqui para estes lados ele há mais é burros) a antiga “ignorância” e “incompetência” dos simples, assim a modos que uma Maria Papoila.
Esforcei-me, Sr. Dr., para escapar a esta fatalidade mas, sabe, isto é mesmo assim, cada um é pró que nasce, uns, como o Sr. Dr., para serem entes esclarecidos, aristocratas da cultura, toda a vida instalados na varanda dos iluminados a fazer o verdadeiro teatro subsidiado a quase 100% pelo Estado e a ver o poviléu ignaro passar (não pelo seu teatro, eu sei, que às vezes disfarço-me de inteligente e vou lá, embora o Sr. Dr. não goste que até não me cumprimenta); outros, como eu, para ajeitada a trouxa, meterem as mãos na massa que mais suja, a do serviço público e da política, e errarem quase sempre – é da sua natureza. Lá dizia a tia Zita: bezerro manso mama na mãe dele e na dos outros. Nem os estudos me valeram, nem ser professora catedrática da Universidade do Porto (fica fora de mão, é verdade, mas ó Sr. Dr., é a maior do país), nem as andanças por esse mundo fora, onde por vezes fui vendo teatro imitando o seu. Não retive nada; deve ter sido por via da mente mole, já o sr. padre dizia.
É o mal, Sr. Dr., de democratizarem a Universidade e, pior ainda, a cultura. Onde já se viu, por exemplo, querer que o povo vá ao D. Maria II ou ao S. Carlos? São coisas mesmo de gente que “quer transformar a cultura em mercado”, como o Sr. Dr. perspicazmente percebeu das minhas palavras. Pior Sr. Dr., confesso, de gente que entende que um dos sinais do nosso tímido desenvolvimento cultural é o descaso entre mercado e cultura.
É como aquela coisa que o Sr. Dr. lembrou e bem da minha “tão defendida descentralização” que “corresponde apenas a um ponto de vista de mero consumidor” e de província, acrescento eu, e pagante, acrescentam muitos contribuintes simplórios. Está mal! Querem cultura de primeira, produzam-na lá na terrinha, como o Sr. Dr. reclama. Concordo! Imagine que até se criaram novos apoios para isso. E se a malta for alfabetizada de primeira geração, esforce-se, que foi o que o Sr. Dr. fez (embora os simplórios contribuintes venham ajudando, pelo menos há trinta anos, com constância, generosidade e, no caso único da Cornucópia, pagando até o aluguer, mas isso são minudências e, como o Sr. Dr., não há outro).
Só não gostei, desculpe Sr. Dr., foi a expressão “exportar para a província”; é que até parece que província e Lisboa não constam do mesmo país e sabe, a gente cá é muito patriota. Mas ó Sr. Dr., olhe que parece que o S. Carlos, a CNB e o D. Maria têm feito mais descentralização e internacionalização, concorrendo isso, é bom de ver, para a “decadência do nosso Teatro de Ópera” a que “conduziu a substituição ordenada por” mim, como o sr. Dr. recorda, “da anterior direcção”. Ó Sr. Dr. isso não será ter em pouca conta o corpo de músicos, cantores e técnicos do S. Carlos? Não me diga que o director artístico era insubstituível e eu, simplória também nestas matérias, e o prof. dr. Mário Vieira de Carvalho, ainda mais simplório, apesar de falar línguas estrangeiras e perceber de bandas de música, não entendemos que devíamos nomear para dirigir um teatro alguém que se recusara púbica e reiteradamente a aceitar o modelo de gestão empresarial (ai, ai, a linguagem!) que o Estado se atreveu a escolher para o S. Carlos? Está mal!
O Sr. Dr., mais do que com a minha fúria arrasadora de três escassos anos, ficou foi zangado por não ter compreendido que a Cinemateca Portuguesa é “uma das melhores cinematecas da Europa e talvez do mundo” – de facto não compreendi. Mas ó Sr. Dr. talvez isso derive de me situar intelectualmente ao nível minhoto e duriense e não europeu e universal; é uma questão de escala, desculpe-me mais uma vez. Em compensação, deu-me a alegria de saber que nalguma coisa, já que no Europeu de futebol foi o que se viu, somos os maiores. Com o espinhaço dobrado, atrevo-me contudo a manter as críticas que faço (no artigo a que se refere e numa entrevista regional que creio não terá lido), a propósito do chamado “pólo” da Cinemateca, ao modo como esta instituição é gerida e a concordar, de boca aberta, com o sr. Dr. quando qualifica de “saudável” a petição que o reclama. O Sr. Dr. é tão compreensivo!
Admira o facto de o Sr. Dr. ter resolvido vir em pública “defesa” de um amigo que acha que eu “insultei”. Fez muito bem, os amigos são para as ocasiões e os lobbies – lá na minha terra a gente chama-lhes a malta do Zé do Telhado, do Quim Bexigas, do Toino das Iscas, mas é o mesmo – existem para isso; e vai ver como virão outros ajudá-los a ambos... Só que, Sr. Dr., há-de ler com menos paixão e mais siso os dois artigos em causa e vai acabar por dar conta que se a motivação para vir em defesa do Sr. Director da Cinemateca foi questão de insultos ainda vai escrever um artiguinho em minha defesa, porque está-me a parecer que o seu amigo é como dizia dum patrício um homem cá de Ceide: “É estilista bilioso, explica-se azedamente, diz com afoiteza grosseira o que sabe; mas acontece às vezes não saber o que diz.” Em matéria de insultos, eu não faço uso deles nem em política, nem na discussão intelectual, por uma razão – simplória – é que o sr. padre sempre me disse que é pecado... Antes um pau de marmeleiro nos costados, mas também sou fraquinha de braços.
Uma coisinha fez-me doer a alma: então o Sr. Dr. acha-me arrogante? E logo o Sr. Dr., um intelectual tão humilde, como não pode deixar de ser um verdadeiro intelectual e príncipe das artes. Penitencio-me, Sr. Dr., nunca eu deveria, como diz, ter tido a “veleidade” de apontar o dedo a um bonzo intocável. Sempre assim foi, nos Dantas não se toca, nem pim, nem que se tenha estado num ponto privilegiado de avaliação. Calado, venerando e agradecido é assim que o poder político deve estar face aos outros poderes e é se quer ganhar eleições. Como os tempos mudaram!
Para terminar, que esta já vai longa, lamento Sr. Dr. ter de o contrariar naquele conselho final que me dá: “Sois belle et tais toi!” Bem queria ser-lhe agradável e seguir o conselho azedo, misógino e fora de moda, até para o sr. Dr. poder envergonhar-se menos de ser o português que é nesta matéria, mas não posso: quanto à beleza, cada um estende a perna até onde tem coberta, como dizia a tia Berta; quanto à faladura, sou dona da minha voz para não ser escrava do meu silêncio, como dizia a mãe dela, que era uma santa e não era deputada.
Dantes, eu sei, as Marias Papoilas calavam e os aristocratas de barba rija falavam, mas os tempos mudaram: é esta coisa da democracia e das igualdades que nos obriga a lidar com gente desqualificada, as mais das vezes, mal lavada até. Mas na vida é assim, Sr. Dr.: uns montam o circo, outros batem palmas. (Deputada do PS pelo Porto – Artigo escrito em 29/06/2008 e publicado no Jornal Público de 07/07/08) - Isabel Pires de Lima
1 comentário:
Há uma longa tradição em Portugal de endeusar determinadas figuras de proa, que, independentemente de terem (sujectivamente) créditos firmados, estão tacitamente isentos de qualquer tipo de escrutínio público de valor. Estes 'intocáveis', produto do típico espírito de aldeia made in Portugal, que repudiam mas de que são, inequivocamente, os maiores beneficiados, são mantidos por uma clique ainda de vistas mais curtas, nutrindo com garbo aquele sentimento aparvalhado de 'eleição' por conviverem e patrocinarem esses pequenissímos deuses domésticos. Pelos vistos, esse Olimpo privativo tem vindo a abrir brechas. Resta saber se, agora, tornados comuns mortais, são capazes das mesmas façanhas e da mesma altivez; o tom geral, desesperado, é apanágio dos fins de ciclo! Será? Eles 'andem' aí há 35 anos... e têm muitas vidas e uma hábil capacidade de mudar de discurso, dizendo sempre as mesmissímas coisas! Cruzes canhoto!!!
Luís Macedo
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