terça-feira, novembro 07, 2006


Ora vejam como em mais de cem anos nada mudou... e porque haveria de mudar...?

A Illustração – Revista Quinzenal para Portugal e Brazil, 20 de Maio de 1884, director Mariano Pina, Paris – cota Biblioteca Nacional J. 1505 M.

“Chronica

Ha dois seculos pelo menos que o mundo inteiro admitte sem discussões uma lenda que deseja passar ao estado de verdade e ao estado de axioma, e que diz assim – Paris é a terra onde melhor se fabrica o riso.
Em todo o seculo XVIII os francezes passaram a sua vida a conversar com Mlle. de Nesle e com a Pompadour, a fazer phrases pelos salões dourados e vastos das Tulherias e pelos velludos de relva dos jardins de Versailles, onde ha satyros que nos espreitam e que riem com o sorriso branco dos marmores por detraz das ramas dos castanheiros – para provarem ás gentes que só eles tinham graça, e que para além da França as sociedades matavam o seu tempo aborrecendo-se e abrindo a bocca. E appareceu Beaumarchais para confirmar a coisa, e hoje a graça parece ser feita exclusivamente de barro francez. Os inglezes, de quando em quando, pela boca de Punch ainda protestam contra semelhante lenda. Mas o Punch não tem razão – porque não tem bom barro! A Grã-Bretanha não precisa de mais gloria porque foi ella quem inventou o beef. Mas a graça, ainda não ha melhor no mercado do que a franceza, a que se encontra á venda por toda a parte, em S. Francisco e em Pekim, e que só se fabrica entre o Café de la Paix e o restaurante do Brébant, quasi sempre ás horas em que toda a Europa honesta dorme.
Mas se Paris é a terra onde melhor se fabrica o riso, é necessário tambem que todo o mundo saiba e que todo o mundo comprehenda que – Lisboa é a terra onde melhor se fabricam as cousas que fazem rir!

Uma das grandes causas que levaram Lisboa até á fabricação verdadeiramente indigena de coisas ridiculas, tendo mais originalidade e mais aspecto primitivo que a própria louça das Caldas e a louça preta d’Aveiro, é a preponderância da imbecilidade insolente nos negocios da terra, obrigando os espiritos sensatos a affastarem-se – deixando o campo livre a todos os banaes, a todos os idiotas, a todos os insignificantes, que se mettem em tudo e que tudo conquistam.
Presentemente em Lisboa raros são os indivíduos que se acham nos lugares que de direito lhes competem;
e são principalmente os governos que se encarregam de collocar os sapateiros nos lugares de alfayates e vice-versa.
De modo que um sensato e pacifico morador da Baixa que assista, sem alterar o seu sangue-frio, a tanta irregularidade e a tanto desconchavo, no dia em que precisar d’um par de botas não sabe ao certo a quem se ha de dirigir – se ao sr. Nunes Algibebe, se ao tribunal da Bôa-Hora, se á secção geodesica, se á Padaria Militar!...

(…)

Os governos lembraram-se um dia de soccorrer a arte portugueza, de ouvir todas as noutes a Somnambula, e de possuir gratis um camarote em S. Carlos. Sobretudo de possuir gratis um camarote! E como em Portugal se não sabe que destino dar a tanto dinheiro que atulha as arcas do thesouro, dão-se todos os annos 25 contos de reis para que venham italianos a Lisboa deliciar os ouvidos de Suas Excellencias os Ministros, - emquanto os pintores portuguezes que illustram em França e Italia o nosso paiz produzindo trabalhos de primeira ordem, teem que viver em Paris com pensões miseraveis;”

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