sexta-feira, setembro 15, 2006

Maria Teresa de Noronha
"Passarinho mesmo preso, és mais feliz do que eu."


Maria Teresa do Carmo Noronha nasceu em Lisboa em 1918, sendo neta dos Condes de Paraty e pertencendo desse modo a uma família da mais antiga nobreza peninsular, cuja linhagem remontava às próprias Casas Reais de Castela e de Portugal em meados do século XIV. Refira-se, de passagem, que se tratava, contudo, de uma família de tradição política liberal: o primeiro Conde, D. Miguel de Noronha Abranches Castelo Branco (1784-1849), lutara ao lado de D. Pedro IV contra a usurpação miguelista, participando mesmo nos desembarques da Terceira e do Mindelo, e o segundo, D. João Inácio de Paula de Noronha (1820-1884), fora mesmo o Grão-Mestre da Maçonaria Portuguesa de 1859 a 1881. De qualquer modo, no contexto conservador das primeiras décadas do século XX esta origem fidalga comportava ainda restrições sociais incontornáveis para uma jovem aristocrata, como a impossibilidade de frequentar qualquer estabelecimento público de ensino formal (Teresa de Noronha teve, em vez disso, os habituais tutores e professores privados nas áreas consideradas socialmente adequadas para o efeito) ou, obviamente, de forma mais taxativa, como a exclusão liminar de qualquer hipótese de carreira profissional.
Não dispomos de muitos dados concretos sobre os inícios da sua relação com a Música, excepto informações vagas, transmitidas no seu circuito familiar, de que teria mostrado desde muito cedo possuir uma voz belíssima, cantando com frequência em coros de igreja, e tendo chegado mesmo a integrar na juventude um coro amador regido pelo Director do Conservatório Nacional, Ivo Cruz. Terá tido lições particulares de piano em criança, mas não terá recebido, aparentemente, aulas de canto; a sua voz é, porém, um exemplo raro de empostação natural, ou seja, de uma técnica instintiva de colocação vocal apoiada no diafragma e utilizando toda a ressonância da cabeça, à semelhança do canto erudito, o que porventura poderá ter-se desenvolvido através desse seu primeiro contacto de infância com o repertório musical litúrgico, então de natureza ainda fortemente operática. O que é certo é que nos círculos aristocráticos do início do século tinha já penetrado largamente o Fado - já não, naturalmente, como expressão de uma frequência do universo marginal das tabernas e bordéis pelos fidalgos boémios, a exemplo do que sucedera com o Conde de Vimioso ou o Marquês de Castelo Melhor em meados do século XIX, mas agora como uma prática familiar inócua e respeitável, própria, inclusive, para pôr em evidência os dotes artísticos das meninas de boa família, como na mesma época sucedia, de resto, nos meios equivalentes de extracção burguesa. Teresa de Noronha, que tinha na família exemplos de fadistas amadores destacados, desde o tio-avô, D. João do Carmo de Noronha, ao próprio irmão, D. Vasco de Noronha, e que deverá ter tido desde criança contacto regular no seu meio com outros casos semelhantes, como o dos tios irmãos D. Pedro e D. António de Bragança, da casa dos Duques de Lafões, terá assim começado naturalmente a cantar o Fado no seu círculo familiar, depressa se espalhando a fama do talento de que dava provas.
O que sabemos é que em 1938, apenas com vinte anos, era convidada pela Emissora Nacional para se apresentar num programa quinzenal regular de fados, o primeiro daquela estação radiofónica. Com excepção de uma interrupção de alguns anos após o seu casamento, em finais de 1947, viria a manter este programa até 1961, granjeando uma enorme popularidade junto dos ouvintes de todo o País, que depois viria a ser reforçada pela ampla circulação dos seus discos. Escusando-se a um verdadeiro circuito profissional, que de resto à época não existia ainda de forma estável para os fadistas fora das casas de fado e dos palcos de revista e opereta, foi continuando a cantar entre família e amigos, ou ocasionalmente em festas de beneficência. Gravou ainda nos anos 40 os primeiros discos de 78 RPM, com a guitarra de Fernando Pinto Coelho e a viola de Abel Negrão, e em 1946 aceitou convites para se apresentar em Barcelona e Madrid, bem como no Brasil. A 12 de Dezembro de 1947, no entanto, casou com José António Guimarães Serôdio, Conde de Sabrosa, ele próprio um guitarrista amador de mérito que se viria a destacar como compositor de fados, e decidiu reduzir ainda mais a sua carreira, só vindo a retomar plenamente em 1952.
Neste último ano, para lá de retomar os seus programas na Emissora Nacional, voltou a gravar uma nova série de discos de 78, agora com acompanhamento de Raul Nery à guitarra e Joaquim do Vale à viola. Seriam os mesmos músicos a acompanhá-la a partir daí em todas as suas actuações, em estúdio ou ao vivo, embora reforçados, a partir de 1959, pelos restantes membros do Conjunto de Guitarras de Raul Nery. Decidiu retirar-se por completo da actividade artística em 1961, querendo, segundo ela própria dizia, ser lembrada no auge das suas capacidades, e abandonou então definitivamente os seus programas de rádio. Contudo, deslocar-se-ia ainda depois dessa data a Monte Carlo, a convite dos Príncipes Rainier e Grace do Mónaco, e a Londres, aí actuando em 1964 na Casa de Portugal e na BBC, com enorme sucesso (uma curiosa faceta anedótica desta apresentação é que o efectivo impacte do programa no público televisivo local e a coincidência inesperada de os ingleses considerarem que Teresa de Noronha e Raul Nery tinham fortes parecenças físicas com a Rainha Isabel II e o Duque de Edimburgo, respectivamente, motivaram a este último respeito, a par com referências musicais muito elogiosas, uma série de referências bem-humoradas nos media britânicos).
Apresentou-se ainda na RTP em 1968, e continuou a gravar discos até 1971 (o seu derradeiro LP seria lançado no ano seguinte). Foi entretanto reduzindo cada vez mais as suas apresentações públicas, mesmo informais, interrompendo-as quase de forma definitiva em 1973. Terá cantado em público, excepcionalmente, pela última vez, segundo informações recolhidas por Daniel Gouveia, em 1976, na casa de fado Picadeiro, de Cascais. Morreu na sua casa de S. Pedro de Sintra a 5 de Julho de 1993, depois de doença prolongada.
- Excerto do texto presente na colectânea de fados de Maria Teresa de Noronha, lançada pela EMI-Music Portugal, Lda., em 2006.

3 comentários:

Aldina Duarte disse...

Para ouvir uma vida inteira até à eternidade!

José Daniel Ferreira disse...

... e para lá dela...

com senso disse...

Maria Teresa de Noronha faz parte das minhas memórias.

Recordo-me de a ver nos anos 60 na televisão. Lá em casa ouvia-se Maria Teresa de Noronha com respeito.

Correspondia a um padrão qualitativo raro, naqueles tempos e ainda hoje.

Há qualquer coisa de coimbrão na sua voz e há também e principalmente uma dicção perfeita... Uma raridade portanto.

Tinha uma voz excelente, com um timbre lindíssimo, ao serviço principalmente do fado tradicional.
Mas não só, Rosa Engeitada, Fado Hilário e Tristeza foram os que mais me ficaram na memória.

Penso que apenas cantou o que gostava e que não se interessou muito em investir numa carreira, o que significaria percorrer caminhos que estão para além da estreiteza musical dos fados tradicionais.

Teve por isso mesmo a sabedoria que se rodear apenas do acompanhamento instrumental mínino, o que fazia sobressair a sua voz!

Presa nas limitações melódicas dos fados tradicionais, constitui no entanto, uma referência de qualidade no canto, e tal como acontece com tudo o que tem qualidade, apesar de não estar entre nós, e de raramente se ouvir nas rádios, continua a ser objecto de justa reverência e de inegável com carinho.

Obrigado DANIES por esta homenagem que lhe prestou.

Um abraço

Luís