terça-feira, julho 11, 2006

Descobri que era europeia
Natália Correia
"Trouxe curiosidades para a América. E não as levo no regresso. Também não levo certezas. Nenhuma das minhas curiosidades foi satisfeita. Deixo-as aqui, como um tributo à alta montanha que o pequeno esquilo não logra trepar. Não foi medo nem desesperança que me tolheram os passos na escalada. Foi a simples verificação dum facto: a América é um problema de que só ela tem a chave. A solução desse problema só interessa aos americanos. Se tentarmos compreendê-la, partindo de nós próprios, da nossa concepção do que ela "possa ser", escolhemos o caminho mais longo, porque nós somos estruturalmente diferentes.
Apontar as diferenças que nos extremam seria a recapitulação da História.
Ponhamos, pois, a questão nestes termos: gostei ou não gostei da América?
Ainda aqui a minha posição é ambígua. É tão impossível gostar da América como não gostar. Isto traduz-se num sentimento abstracto: o da fascinação. E qual é a fonte donde brota essa fascinação? O enorme tablado onde se desenrola a esotérica urdidura da tragédia americana. O seu esoterismo não é o inviolável segredo dos deuses. É a crise do desenvolvimento. Uma puberdade física e mental que convive, no seu âmago, com os fantasmos das coisas irreveladas. Nas suas células em formação ferve o sangue coagulado de várias taras sem poros para se evaporarem, a neurastenia da solidão acompanhada, um romantismo turbulento e um puritanismo mórbido. Objectiva e utópica, intransigente e tolerante, aventureira e calculista, arrebatada e grave, magnânima e egoísta, franca e enigmática, tudo de bom e de mau, de elevado e de mesquinho, nela existe em potencial, como num barro tosco a que o cinzel dos séculos ainda não deu forma.
É a antítese da tragédia europeia filtrada no cristal do tempo: a serenidade clássica da experiência e da razão.
Os americanos transmitem-nos a angústia do inacabado. Eles não são completamente generosos, nem completamente egoístas; não são completamente cordiais, nem completamente hostis. São seres por revelar.
Agosto de 1950"

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