A misteriosa vida e morte do Dr. Rau
Paula Lobo
Louco? Envenenado? Durante quatro décadas Gustav Rau guardou o tesouro longe da cobiça alheia e dos olhares do público, mas nos últimos quatro anos de vida foi mesmo obrigado a provar aos tribunais que, apesar de viver numa cadeira de rodas e de se perder pelas ruas por exagerar na auto-medicação, continuava na plena posse das suas faculdades.
Quando em 1999 fez um novo testamento a favor da Unicef alemã, Rau enfureceu os advogados das fundações suíças que criara para gerir a sua valiosa colecção privada de arte - avaliada, numa estimativa conservadora de 2001, em 600 milhões de dólares (hoje, 470 milhões de euros) -, a segunda maior do mundo, dizem os peritos, depois da Thyssen (Madrid). Um juiz de Baden-Baden acabaria por dar-lhe razão.
Em 2000, Michel Dauberville ganhou na justiça francesa a propriedade de Mar em L'Estaque (1836), de Cézanne, alegadamente roubada ao avô durante a II Guerra Mundial.
Já depois da morte do coleccionador, duas suspeitas recaíram sobre os seus colaboradores mais próximos: Robert Clementz, o secretário (que veio a Lisboa apresentar a exposição), e Sigrid Thost, que geria judicialmente os bens. Em 2002, o procurador de Estugarda abriu investigações sobre a possível venda de obras sem conhecimento do dono. E exigiu novas análises ao corpo, já que a autópsia revelou níveis elevados de substâncias tóxicas no sangue. Problema cardíaco fora a causa aparente da morte de Gustav Rau, a 3 de Janeiro de 2002, perto da sua cidade natal de Estugarda, na Alemanha.
Filho único de um industrial que se associou à Mercedez-Benz e fez fortuna com peças para automóveis, sobrinho do milionário que produzia os caldos culinários Maggi, Gustav Rau nasceu a 21 de Janeiro 1922 e parecia destinado aos negócios.
A II Guerra Mundial interrompeu-lhe os estudos de Ciências Políticas e Económicas na Universidade de Tübingen. Mobilizado para a Wermacht aos 19 anos, as convicções anti-nazis ditaram a deserção. Quando a Holanda foi invadida, Gustav entregou-se aos ingleses. E acabou o curso com distinção, em 1947.
Como esperado, continuou a gerir empresas. Solteiro e sem filhos, em 1958 gastou pela primeira vez dinheiro naquele que viria a ser o seu único luxo: comprou A Cozinheira, de Gerard Dou (século XVII). Tinha 40 anos quando foi estudar medicina na Universidade de Munique. Graduou-se em 1969, vendeu os negócios herdados do pai e do tio, especializou-se em medicina tropical e pediatria e, em 1971, criou a Fundação Médica do Dr. Rau. Objectivos: combater a pobreza no Terceiro Mundo e promover a saúde e alfabetização.
Gustav Rau começou pela Nigéria, mas foi na fronteira do Zaire com o Ruanda que concentrou esforços e fortuna. Em 1977, construiu um hospital que atendia dois mil pacientes/ano e distribuía alimentos a mais de oito mil pessoas/dia. O hospital ainda existe e foi por ele que abdicou do sonho de ter um museu em Marselha (chegou a construí-lo mas ofereceu-o à cidade). Regressado à Europa em 1997, viveu em França e no Mónaco e guardava em Zurique o seu tesouro artístico - que aumentou deixando África três vezes por ano, para ir a leilões na Europa e EUA. Um acervo ímpar que cobre 500 anos de História da Arte, adquirido seguindo apenas o próprio gosto.
Por disposição testamentária de Gustav Rau, a sua colecção terá de correr mundo durante 25 anos. A Unicef decidirá depois o que fazer com ela, mas o dinheiro só poderá ser usado em causas filantrópicas.
Seis séculos de celebração do Belo no Museu Nacional de Arte Antiga
Maria João Pinto
Tudo começa com ecos de Leonardo, em Retrato de uma jovem, de Bernardino Luini, para terminar num espaço de liberdade, com Janela Aberta em Uriage, de Pierre Bonnard. Atravessando o tempo como uma flecha, entre um e outro se percorrem seis séculos de demanda do Belo no olhar da arte europeia. Muitas são as escalas no caminho, mas essas duas obras ficarão na memória como marca d'água de Grandes Mestres da Pintura - De Fra Angelico a Bonnard, a mega-exposição que, no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), reúne pela primeira vez entre nós uma selecção de 95 obras--primas da colecção do médico e filantropo Gustav Rau (1922-2002).
Na apresentação da exposição - a inaugurar hoje, Dia Internacional dos Museus -, Dalila Rodrigues definiria este como "um momento histórico" na já longa trajectória do museu que dirige - pela excepcionalidade das obras em apreço, "fazendo o trânsito entre arte antiga e arte contemporânea", e pela "dimensão internacional" desta mostra, tornada fenómeno de massas na sua itinerância pelo mundo.
Nesta sua passagem por Lisboa, devido à flexibilidade de escolha que a colecção permite, Grandes Mestres da Pintura - De Fra Angelico a Bonnard privilegiará, sobretudo, critérios cronológicos e geográficos em matéria de discurso expositivo: num primeiro momento, abarcando criações dos séculos XV a XVIII, com particular realce para as escolas italiana, flamenga, francesa e espanhola (Fra Angelico, Canaletto, Cranach, Fragonard, El Greco, entre outros); num segundo, percorrendo movimentos artísticos de Oitocentos e Novecentos (num desfile de criadores de primeira grandeza como Corot, Courbet, Cézanne, Manet, Degas, Monet ou Renoir).
E porque esta exposição pode ser igualmente lida "como complemento", também essa dimensão será explorada em "diálogo com o acervo do MNAA". Uma vez mais trabalhando a noção de tempo, dado que, lembrou Dalila Rodrigues, "o nosso acervo pára no início do século XIX e esta exposição progride até meados do século XX".
Pelo seu impacto e por constituir uma oportunidade de excepção, a directora do MNAA espera ver esta mostra - que obrigou ao natural reforço de medidas de segurança - receber "cem mil visitantes, no mínimo". Uma fasquia que, disse, "certamente será ultrapassada".
A inauguração está marcada para as 18.00 e prosseguirá noite dentro, até às 03.00, nos jardins do museu. "Em festa", como sublinhou Dalila Rodrigues, mesmo que "os restantes dias do ano" sejam, para os museus portugueses, "dias difíceis" num quadro de recorrentes constrangimentos orçamentais. Nessa medida, frisou ainda, o apoio externo, "em particular o apoio mecenático do Millennium bcp", representado na cerimónia pelo seu presidente, Paulo Teixeira Pinto, "foi decisivo" para que a passagem desta exposição pelas Janelas Verdes "fosse possível".
Grandes Mestres da Pintura - De Fra Angelico a Bonnard ficará patente ao público até 17 de Setembro. Sendo o Dia Internacional dos Museus dedicado, este ano, aos jovens, a mostra será envolvida por uma especial atenção à "dimensão do entretenimento e do lazer". Porque, salientou Dalila Rodrigues,"também num museu é fundamental programar para todos os públicos".
Paula Lobo
Louco? Envenenado? Durante quatro décadas Gustav Rau guardou o tesouro longe da cobiça alheia e dos olhares do público, mas nos últimos quatro anos de vida foi mesmo obrigado a provar aos tribunais que, apesar de viver numa cadeira de rodas e de se perder pelas ruas por exagerar na auto-medicação, continuava na plena posse das suas faculdades.
Quando em 1999 fez um novo testamento a favor da Unicef alemã, Rau enfureceu os advogados das fundações suíças que criara para gerir a sua valiosa colecção privada de arte - avaliada, numa estimativa conservadora de 2001, em 600 milhões de dólares (hoje, 470 milhões de euros) -, a segunda maior do mundo, dizem os peritos, depois da Thyssen (Madrid). Um juiz de Baden-Baden acabaria por dar-lhe razão.
Em 2000, Michel Dauberville ganhou na justiça francesa a propriedade de Mar em L'Estaque (1836), de Cézanne, alegadamente roubada ao avô durante a II Guerra Mundial.
Já depois da morte do coleccionador, duas suspeitas recaíram sobre os seus colaboradores mais próximos: Robert Clementz, o secretário (que veio a Lisboa apresentar a exposição), e Sigrid Thost, que geria judicialmente os bens. Em 2002, o procurador de Estugarda abriu investigações sobre a possível venda de obras sem conhecimento do dono. E exigiu novas análises ao corpo, já que a autópsia revelou níveis elevados de substâncias tóxicas no sangue. Problema cardíaco fora a causa aparente da morte de Gustav Rau, a 3 de Janeiro de 2002, perto da sua cidade natal de Estugarda, na Alemanha.
Filho único de um industrial que se associou à Mercedez-Benz e fez fortuna com peças para automóveis, sobrinho do milionário que produzia os caldos culinários Maggi, Gustav Rau nasceu a 21 de Janeiro 1922 e parecia destinado aos negócios.
A II Guerra Mundial interrompeu-lhe os estudos de Ciências Políticas e Económicas na Universidade de Tübingen. Mobilizado para a Wermacht aos 19 anos, as convicções anti-nazis ditaram a deserção. Quando a Holanda foi invadida, Gustav entregou-se aos ingleses. E acabou o curso com distinção, em 1947.
Como esperado, continuou a gerir empresas. Solteiro e sem filhos, em 1958 gastou pela primeira vez dinheiro naquele que viria a ser o seu único luxo: comprou A Cozinheira, de Gerard Dou (século XVII). Tinha 40 anos quando foi estudar medicina na Universidade de Munique. Graduou-se em 1969, vendeu os negócios herdados do pai e do tio, especializou-se em medicina tropical e pediatria e, em 1971, criou a Fundação Médica do Dr. Rau. Objectivos: combater a pobreza no Terceiro Mundo e promover a saúde e alfabetização.
Gustav Rau começou pela Nigéria, mas foi na fronteira do Zaire com o Ruanda que concentrou esforços e fortuna. Em 1977, construiu um hospital que atendia dois mil pacientes/ano e distribuía alimentos a mais de oito mil pessoas/dia. O hospital ainda existe e foi por ele que abdicou do sonho de ter um museu em Marselha (chegou a construí-lo mas ofereceu-o à cidade). Regressado à Europa em 1997, viveu em França e no Mónaco e guardava em Zurique o seu tesouro artístico - que aumentou deixando África três vezes por ano, para ir a leilões na Europa e EUA. Um acervo ímpar que cobre 500 anos de História da Arte, adquirido seguindo apenas o próprio gosto.
Por disposição testamentária de Gustav Rau, a sua colecção terá de correr mundo durante 25 anos. A Unicef decidirá depois o que fazer com ela, mas o dinheiro só poderá ser usado em causas filantrópicas.
Seis séculos de celebração do Belo no Museu Nacional de Arte Antiga
Maria João Pinto
Tudo começa com ecos de Leonardo, em Retrato de uma jovem, de Bernardino Luini, para terminar num espaço de liberdade, com Janela Aberta em Uriage, de Pierre Bonnard. Atravessando o tempo como uma flecha, entre um e outro se percorrem seis séculos de demanda do Belo no olhar da arte europeia. Muitas são as escalas no caminho, mas essas duas obras ficarão na memória como marca d'água de Grandes Mestres da Pintura - De Fra Angelico a Bonnard, a mega-exposição que, no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), reúne pela primeira vez entre nós uma selecção de 95 obras--primas da colecção do médico e filantropo Gustav Rau (1922-2002).
Na apresentação da exposição - a inaugurar hoje, Dia Internacional dos Museus -, Dalila Rodrigues definiria este como "um momento histórico" na já longa trajectória do museu que dirige - pela excepcionalidade das obras em apreço, "fazendo o trânsito entre arte antiga e arte contemporânea", e pela "dimensão internacional" desta mostra, tornada fenómeno de massas na sua itinerância pelo mundo.
Nesta sua passagem por Lisboa, devido à flexibilidade de escolha que a colecção permite, Grandes Mestres da Pintura - De Fra Angelico a Bonnard privilegiará, sobretudo, critérios cronológicos e geográficos em matéria de discurso expositivo: num primeiro momento, abarcando criações dos séculos XV a XVIII, com particular realce para as escolas italiana, flamenga, francesa e espanhola (Fra Angelico, Canaletto, Cranach, Fragonard, El Greco, entre outros); num segundo, percorrendo movimentos artísticos de Oitocentos e Novecentos (num desfile de criadores de primeira grandeza como Corot, Courbet, Cézanne, Manet, Degas, Monet ou Renoir).
E porque esta exposição pode ser igualmente lida "como complemento", também essa dimensão será explorada em "diálogo com o acervo do MNAA". Uma vez mais trabalhando a noção de tempo, dado que, lembrou Dalila Rodrigues, "o nosso acervo pára no início do século XIX e esta exposição progride até meados do século XX".
Pelo seu impacto e por constituir uma oportunidade de excepção, a directora do MNAA espera ver esta mostra - que obrigou ao natural reforço de medidas de segurança - receber "cem mil visitantes, no mínimo". Uma fasquia que, disse, "certamente será ultrapassada".
A inauguração está marcada para as 18.00 e prosseguirá noite dentro, até às 03.00, nos jardins do museu. "Em festa", como sublinhou Dalila Rodrigues, mesmo que "os restantes dias do ano" sejam, para os museus portugueses, "dias difíceis" num quadro de recorrentes constrangimentos orçamentais. Nessa medida, frisou ainda, o apoio externo, "em particular o apoio mecenático do Millennium bcp", representado na cerimónia pelo seu presidente, Paulo Teixeira Pinto, "foi decisivo" para que a passagem desta exposição pelas Janelas Verdes "fosse possível".
Grandes Mestres da Pintura - De Fra Angelico a Bonnard ficará patente ao público até 17 de Setembro. Sendo o Dia Internacional dos Museus dedicado, este ano, aos jovens, a mostra será envolvida por uma especial atenção à "dimensão do entretenimento e do lazer". Porque, salientou Dalila Rodrigues,"também num museu é fundamental programar para todos os públicos".
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