sábado, março 12, 2005

Amélia Rey Colaço - Palavras Para Quê?


Amélia Rey Colaço

Natália Correia e Fernanda de Castro chamavam-lhe, pelo seu porte aristocrático e energia marcial, a Imperadora.

Oriunda de famílias de aristocratas e artistas (o pai era o compositor Alexandre Rey Colaço, professor dos príncipes, a avó, a célebre Madame Reinhardt, com salão literário e musical em Berlim), Amélia recebe, desde criança, uma formação invulgarmente requintada.

Apaixona-se pelo teatro aos 15 anos, ao ver, na Alemanha, os espectáculos de Max Reinhardt. Recebe aulas de Augusto Rosa e, a 17 de Novembro de 1917, estreia-se no Teatro República, na peça Marinela. Para fazer a personagem, uma rude vagabunda, aprende, durante meses, a andar descalça e a usar farrapos, no interior do jardim do seu palacete. O êxito é retumbante.

Casa, em Dezembro de 1920, com o actor Robles Monteiro, um ex-seminarista vindo da Beira Baixa, para trocar, a conselho do bispo (entusiasmado com as suas récitas religiosas), o altar pelo palco. Rapidamente os dois fundam uma companhia própria - será a mais antiga (durou 53 anos) da Europa.

Amélia imprime aos seus espectáculos um cunho de elegância, de bom-gosto, de invenção, de requinte desconhecidos entre nós. Chama pintores prestigiados para colaborarem com ela, casos de Raul Lino, Almada Negreiros, Eduardo Malta. Contrata nomes que são ídolos do público (Ângela Pinto, Palmira Bastos, Nascimento Fernandes, Alves da Cunha, Lucília Simões, Estêvão Amarante, Maria Matos, Vasco Santana) e revela, fazendo escola, novos actores, como Raul de Carvalho, Álvaro Benamor, Maria Lalande, Assis Pacheco, João Villaret, Augusto de Figueiredo, Paiva Raposo, Pedro Lemos, Eunice Muñoz, Carmen Dolores, Maria Barroso, João Perry, Madalena Sotto, Helena Félix, Rogério Paulo, José de Castro, Lurdes Norberto, Varela Silva, João Mota.

Robles Monteiro, um dos maiores ensaiadores do teatro português, apaga-se deliberadamente para a projectar. «Toda a sua vida foi feita em função de mim. Trocou as suas ambições pelas minhas. Tinha os seus sonhos próprios e pô-los de lado pelos meus sonhos», afirmar-nos-á Amélia Rey Colaço.

ÉPOCA DE OIRO

A concepção que Amélia Rey Colaço tinha do que devia ser uma companhia nacional resultou em pleno. Fará no século XX o mesmo que Almeida Garrett no XIX.

Actuando em vários planos, estrutura, primeiro, uma companhia coesa e disciplinada, metódica e exigente. A seguir, joga na dignificação social do actor, conquistando para ele um estatuto de superioridade inovador. Organiza, ao mesmo tempo, um reportório ambicioso, diversificado, alternando contemporâneos com clássicos, estrangeiros com portugueses. Abre (e nisso foi única) as portas à dramaturgia nacional, fomentando-a, recompensado-a como ninguém mais fez depois dela.

O incentivo dado aos nossos autores fê-los conhecer, contra a Censura e o dirigismo cultural, uma época de oiro. José Régio, Luiz Francisco Rebello, Bernardo Santareno, Romeu Correia, Miguel Franco são alguns dos que, então, se afirmaram.

«Nesse período admirável de ressurgimento da nossa dramaturgia são levadas à cena 116 peças de autores nacionais, 63 em estreia absoluta», anota Vítor Pavão dos Santos, para quem a Companhia Amélia Rey Colaço/Robles Monteiro «é a espinha dorsal do teatro português do século XX».
«Amélia Rey Colaço soube, como ninguém, manter a chama do teatro apesar da ditadura. Conheci muitas pessoas do teatro e ela foi a única que me ensinou, pessoalmente, algo dos seus diversos ofícios», comenta-nos o dramaturgo Mário Sério.

SALAZAR ADMIRAVA-A

Com ousadia revela, por outro lado, o que de mais avançado surge no mundo: Jean Cocteau, Jean Anouih, Lorca, Valle Ínclan, Alejandro Casona, O'Neill, Tennessee Williams, Arthur Miller, Pirandello, Eduardo De Filippo, Diego Fabri, Max Firisch, Ionesco, Durrenmatt, Albee, Pinter.

Apaixonada por Brecht, pede ao ministro da Educação (entidade que tutelava o teatro Nacional) uma audiência. Ao entrar no seu gabinete, o governante diz-lhe: «Se vem cá pedir para eu autorizar esses comunistas de que gosta, o Brecht, o Camus, o Sartre, pode ir-se embora.» Amélia pára e diz: «Então, boa tarde», e dá meia volta.

Salazar gostava do seu porte altivo e grave. Apreciava-lhe a fineza, a inteligência, a cultura. Ficava-se a ouvi-la, quando se deslocava aos ensaios gerais das suas peças (nunca ia a estreias), com curiosidade, com prazer. Ela não lhe fazia pedidos, ele não lhe agredia a independência.

ANCIÃ BELÍSSIMA

Aos 90 anos, Amélia Rey Colaço era uma anciã belíssima, serena por fora, vibrátil por dentro. Luminosidades intensas fulguravam-lhe com frequência o olhar, como se a alma, a energia se quisessem libertar do corpo que as arqueava.

Era um ser notável de sedução, de ironia, de humildade, de orgulho. Como poucos, sabia aproximar-se e distanciar-se, revelar-se e ocultar-se. Tornou-se numa personagem ficcionada, encenada por si própria com, por vezes, genialidade.

O reverso dos aplausos, das benesses, chegar-lhe-ia penosamente à medida que a companhia se decompunha por incêndios, por bloqueios, por incomprensões, em agonia lenta, densa. «O meio fechou-se, os críticos estavam, no final, contra nós», recorda-nos Mariana Rey Monteiro.
Em princípios de 1974, Amélia Rey Colaço regressa ao S. Luiz, de onde partira. O ciclo fecha-se. Pouco depois dá-se o 25 de Abril. Percebendo que a vão encarar como um símbolo do Estado Novo, suspende a companhia e sai de cena.

Assume a injustiça com dignidade, com discrição. Em silêncios imerge no outro lado da ribalta, o da penumbra, o do apagamento. Para trás dela ficam - o futuro irá comprová-lo - espectáculos (a Castro, O Processo de Jesus, A Visita da Velha Senhora, Tango) que são obras-primas, patrimónios preciosos da nossa cultura, da nossa memória.

RECORDAÇÕES NEFASTAS

«Incêndios em teatros», e «datas em 8» perseguiram dramaticamente a actriz durante a vida. Quatro edifícios onde actuou foram, com efeito, pasto das chamas, ruindo dois por completo.

A série começa no São Luiz (ex-Teatro República), que arde pouco antes de Amélia se estrear. Logo a seguir, o fogo obriga-a a deixar o Trindade, onde se instalara. Radicada no D. Maria, por concessão pública, vê as labaredas reduzirem-no a escombros na noite de 2 de Dezembro de 1964. Três anos mais tarde, o Avenida, onde se acolhera, transforma-se em cinzas. Novo incêndio (no Capitólio) obriga-a, em 1970, a nova mudança (para o Trindade).

As datas terminadas em 8 revelam-se-lhe; entretanto (anota a revista Guia na sua última edição), um flagelo. A avó materna e o pai, por exemplo, falecem em 1928, a mãe em 1938, o marido e o genro em 1958.

Dificuldades graves obrigam-na a deixar, em 1968, a moradia onde nascera, na Lapa. A sua companhia é oficialmente extinta em 1988, altura em que a actriz se vê obrigada a leiloar o recheio da casa do Dafundo (cedida pela marquesa do Cadaval) e a abandoná-la. A 8 de Julho morre, em Lisboa, junto da filha.

TEXTO DE FERNANDO DACOSTA - In Revista "Visão", Lisboa, 26 de Fevereiro de 1998

5 comentários:

Anónimo disse...

Será que no António Lagarto há alguma coisa de Amélia Rey Colaço

Anónimo disse...

Nunca tive a hipotese de ver a famosa D. Amélia Rey Colaço em palco, mas vi-a a fazer talvez numa das melhores séries cómicas que passou pela televisão portuguesa Gente Fina É Outra Coisa. Espero que a RTP Memória transmita esta série que tinha um elenco de luxo: Amélia Rey Colaço, Ruy de Carvalho, Mariana Rey Monteiro, Nicolau Breyner, Luisa Barbosa, Simone de Oliveira, entre muitos outros

José Daniel Ferreira disse...

Dúvido que exista em António Lagarto uma miligrama que seja de Amélia Rey Colaço. Aliás, julgo que jamais irá aparecer no Teatro Nacional D. Maria II alguém como Amélia Rey Colaço

Anónimo disse...

Magnífico
O artigo do Fernando, muito oportunamente colocado neste blog.
São memórias que devem ser lembradaspois parece que ninguém gosta que se fale daquilo que se fes de positivo no tempo da outra senhora, malgré, o regime de censura que existia na altura.

Parabéns
zé maria

Anónimo disse...

Lapso...
fez em vez de fes como é óbvio.