quinta-feira, maio 10, 2012

O Meu Primeiro Fato de Máscara, por André Brun


Mascarei-me duas vezes na minha vida. A segunda foi de dominó e tinha estreado, para correr várias casas conhecidas e intrigar meio mundo, umas botas de polimento próximas descendentes daqueles borzeguins da Inquisição, com que os Torquemadas arranjavam um pé para fazer confessar as suas vítimas tudo quanto lhes convinha saber. Recordo-me que fui acabar melancolicamente a noite num camarote do D. Maria dentro de uma tipóia ignóbil, com o aparelho de tortura debaixo do braço.
A primeira vez tinhe eu sete anos e foi de pajem. Em pequeno, as máscaras inspiravam-me um pavor terrível. Mas despontava o Entrudo e ouvia na minha rua a voz fanhosa dos chéchés pedindo dez reisinhos para velhos, sentia não ter a fortuna dos Vanderbilst para fazer desaparecer da face da terra aquele horror, bem maior para mim do que o de Macbeth em face do fantasma do seu crime.
Meus pais deliberaram curar-me pela fórmula do similia similibus tão querida dos homeopatas. Confeccionou-se um fato de pajem, mais ou menos da Idade Média. Tinha então, minhas senhoras, uns caracóis louros, que muito desejaria ainda ter hoje para vos fascinar. A fatiota ficou luxuosa. A capa era de cetim de três tostões o metro e tinha um galão dourado, deste de loja de caixões, que produzia um efeito deslumbrante. Havia mais uns calções com um folho, um gibão também folhado, umas botas de veludo muito simpáticas, um gorro com uma pluma de peru e uma espécie de punhal, que fora comprado num ferro-velho da Rua de S. Bento. Dias antes do Domingo Gordo, o fato concluiu-se e vestiram-me. Achei as botas um tudo nada apertadas; mas a espadinha encheu-me do contentamento mais discreto. Sentia nesse tempo uma vocação, que perdi depois, para espadas, espadins e outras armas brancas. Levaram-me a um espelho e tal era o susto qu eu tinha das mascáras que tive medo de mim mesmo. Pois nem por isso estava terrível: uma cara bochechuda de maça camoesa, umas perninhas tortas que ainda hoje tenho, os caracóis acima referidos, os pés metidos para dentro e um embaraço terrível derivado a não saber onde meter as mãos, visto os calções não serem dotados de bolsos. Para remediar essa falta, calçaram-me umas luvar brancas de pelica, justas como uma sentença do sábio Salomão e todo o pessoal , que assistia à prova, declarou una voce  que estava um pajem completo. Eu nem ousava olhar para a minha imagem e pus-me a tremer interiormente, pensando no dia próximo em que teria de estarrecer a multidão com os meus encantos. Chegou o dia. Esses malditos dias de encravação chegam sempre. Cuidando dar-me um prazer infinito, minha mãe vestiu-me ao romper da alva e, como Jesus a Lazaro, disse-me: "Surge et ambula!" Posto que autorizado a ambular pela casa toda, melancolicamente me sentei numa cadeira e a primeira opinião que ouvi foi a do meu gato. O Tareco nunca me tinha visto tão formoso e, não me reconhecendo, começou a fazer-se marreca, a eriçar o rabo e acabou por me fungar. Ao cair em si, sorriu, miou um: Bem te conheço, ó máscara, cheirou o espadim, viu que era de lata muito ordinária e não me ligou mais importância, retirando-se para debaixo do poial do pote, onde certamente me acabou de desconsiderar.
Depois do almoço tive de sair. Iam levar-me ao meu avô, às minhas tias, às várias pessoas das minhas insignificantes relações. A minha rua, pejada de cavalheiros em fralda de camisa, de velhos de Entrudo, de cegadas, inspirava-me um medo atroz; mas, silencioso e disposto a tudo, dei a mão a minha mãe. Logo ao sair a porta de casa tive um desgosto. Vários petizes, da minha idade, fizeram-me uma tourada indecente. Todos me vieram desfrutar; um quis bulir-me no espadim, outro apalpou-me as pernas por detrás. Eu estava vexado por tão pouco respeito. Ao voltar da primeira esquina foi o fim do mundo. Avança um mariola, com um facalhão de papelão prateado numa mão e um chifre na outra, com umas lunetas de lata e a cara besuntada de zarcão e, ao dar comigo, quis por força que eu desse uma pançadinha ao velho. Eu, que sempre respeitei pessoas de idade, começo a chorar, o chéché a dar pulos de corça e, quando por fim ele foi dançar a outra freguesia, deixou-me banhado em pranto, como Madalena depois de ouvir a palavra de Cristo. Para me animar, minha mãe informava-me sobre os costumes dos pajens da Idade Média.
- Não chores, filho! Os pajens nunca choravam.
É que provavelmente naquele tempo não havia chéchés. As sucessivas visitas às pessoas das minhas relações consolaram-me um pouco das amarguras da rua. Fui sempre recebido com aclamações:
- Olha que bonito!
- Adeus, ó máscara. Bem te conheço...
- É ele! É ele!
Era eu, com efeito. Muito aborrecido; mas era eu. Naquele Calvário faltava um passo ainda: - o fotógrafo - e lá dei entrada pela tarde. O local de pose estava ocupado nessa ocasião por um notável oficial de marinha de uns cinco anos, com dragonas, calças até para debaixo dos pés e espada comprida. Também tinha caracóis. Não sei bem em que marinha esse ornamento capilar é admitido: na armada suiça talvez. O almirante ainda estava mais aborrecido do que eu. Por mais que lhe dissessem que olhasse para um pauzinho de onde havia de sair um passarinho, o marítimo não queria acreditar e chorava como um danado. Se a tripulação da esquadra o visse! Quando chegou a minha vez, portei-me heroicamente. Deixei que me operassem duas vezes sem clorofórmio.
Não estavam, porém, terminadas as provações desse dia. Faltava ainda uma visita a casa dum amigo de meu pai, amigo que tinha um cão chamado Garibaldi. Cada vez que avistava com esse célebre guerrilheiro italiano, eu curtia angústias infinitas. Era enorme e doido por brincar. Nesse dia, recebeu-me ladrando com furor. Decididamente os animais eram contra o meu disfarce. Por fim aquietou-se e principiou na brincadeira do costume. Começou girando em volta de mim, dando uns pulinhos idiotas e entrou de bulir com a capinha, que airosamente me prendi dum ombro. Três vezes dei volta ao quarto, onde me achava só com o bicho; outras tantas ele tratou de investir comigo, abanando jubilosamente o rabo. A capinha dera-lhe no goto. Por fim deitou-lhe os dentes e abalou para o quintal com ela. Eu não me atrevia a dizer nada. Parecia um cristão lançado às feras do circo. Garibaldi voltou. Não lhe bastava a capa; cobiçava agora o gorro com a pena de peru. Dei-lho. Levou-o e nunca mais ninguém o viu. Resignado, já estaca disposto a dar-lhe o espadim, as botas de veludo e os calções, quando voltaram as pessoas crescidas e fui gratificado com dois pescoções por ter deixado estragar um fato tão bonito, que me ficava tão bem... Para me arreliar de todo, declararam os meus progenitores que nunca mais me mascarariam. Eu, contentíssimo, jurei nessa hora que, se Deus me desse filhos menores, nunca os vistiria de pajem. Porém, ainda a minha Aninhas não tinha cinquenta dias, tirei-lhe o retrato vestida à moda do Minho, com o fato duma boneca. Que terá ela pensado de mim? - André Brun, in Sem Pés Nem Cabeça


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