quinta-feira, maio 17, 2012

Dia da Espiga - Por André Brun



“O Dia da Espiga – Por André Brun

Hontem á noite um estrangeiro de passagem em Lisboa interrogou-me ácerca  da solenidade do dia. Citei-lhe a tradição que obriga todo o bom alfacinha a ir pelos campos floridos colher uma espiga afim de ter pão todo o ano. O meu interlocutôr, creatura ingénua e simples, declarou-se encantado com essa tradição e citou-me várias da sua terra. Animando-se, descreveu-me as grandes festas rústicas do seu paiz, apoteóses da Primavera e outras, e, durante meia hora, falou-me de excursões alegres, de bandos de raparigas acompanhando grupos musicaes e constituindo orfeões, de grandes bailes populares onde a mocidade se expande gracíosa, em que há musicas por toda a parte, em que se organisam á volta longos cortejos luminosos… A cada passo punha em relêvo a fraternidade que preside a todos esses folguêdos, cheios de desprendimento das convenções e preconceitos, mantidos todavía na mais absoluta correcção.

Eu escutava-o tristemente e quando êle, por sua vez, me perguntou como se passavam as coias por cá, improvisei uma larga e mentirosa narrativa, parodíada da que acabava de ouvir.

Tive vergônha de lhe diser que esta nossa grande festa nacional da Espiga se limita a uma passeiata ao campo em pequenos grupos, com um farnelsito mesquinho, sem a menór sombra de familiaridade entre ranchos visinhos e antes com esta perpétua desconfíança do proximo que é vêso do bom portuguez, a uma devastação cruel de ceáras mal nascidas ainda, a umas vinhosas expansões pelo entardecer e a uma retirada urgente, mal lusem as primeiras estrêlas não venha por acaso uma malta de fadistas bêbados rematar com uma coça de facadas o triste arremêdo duma festa.

Hoje os jornaes vêm cheios de desordens, algumas sangrentas e desastrosas. Em todas a notícias se mencionam casos de embriaguez escandalosa e réles. Houve furtos, assaltos, agressões. Em resumo: Lisboa foi hontem expandir-se para o “Papagaio”, para a “Aguia Roxa”, etc. Para nós, lisboêtas, não é preciso diser mais nada.

1907” -  foi respeitada a ortografia original

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