“O Dia da Espiga – Por André Brun
Hontem á noite um estrangeiro de
passagem em Lisboa interrogou-me ácerca da
solenidade do dia. Citei-lhe a tradição que obriga todo o bom alfacinha a ir
pelos campos floridos colher uma espiga afim de ter pão todo o ano. O meu
interlocutôr, creatura ingénua e simples, declarou-se encantado com essa
tradição e citou-me várias da sua terra. Animando-se, descreveu-me as grandes
festas rústicas do seu paiz, apoteóses da Primavera e outras, e, durante meia
hora, falou-me de excursões alegres, de bandos de raparigas acompanhando grupos
musicaes e constituindo orfeões, de grandes bailes populares onde a mocidade se
expande gracíosa, em que há musicas por toda a parte, em que se organisam á
volta longos cortejos luminosos… A cada passo punha em relêvo a fraternidade
que preside a todos esses folguêdos, cheios de desprendimento das convenções e
preconceitos, mantidos todavía na mais absoluta correcção.
Eu escutava-o tristemente e
quando êle, por sua vez, me perguntou como se passavam as coias por cá,
improvisei uma larga e mentirosa narrativa, parodíada da que acabava de ouvir.
Tive vergônha de lhe diser que
esta nossa grande festa nacional da Espiga se limita a uma passeiata ao campo
em pequenos grupos, com um farnelsito mesquinho, sem a menór sombra de
familiaridade entre ranchos visinhos e antes com esta perpétua desconfíança do
proximo que é vêso do bom portuguez, a uma devastação cruel de ceáras mal
nascidas ainda, a umas vinhosas expansões pelo entardecer e a uma retirada
urgente, mal lusem as primeiras estrêlas não venha por acaso uma malta de
fadistas bêbados rematar com uma coça de facadas o triste arremêdo duma festa.
Hoje os jornaes vêm cheios de
desordens, algumas sangrentas e desastrosas. Em todas a notícias se mencionam
casos de embriaguez escandalosa e réles. Houve furtos, assaltos, agressões. Em
resumo: Lisboa foi hontem expandir-se para o “Papagaio”, para a “Aguia Roxa”,
etc. Para nós, lisboêtas, não é preciso diser mais nada.
1907” - foi respeitada a ortografia original
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