segunda-feira, março 19, 2012

Homenagem a Maria Carlota Álvares da Guerra e à sua Crónica Feminina



Os Importantes
Tenham lá paciência, mas durante as minhas férias vi-os de perto e não resisto a dirigir-lhes umas palavrinhas neste rectângulo que sei tão lido por este Portugal fora.
Tenham lá paciência, senhores importantes, mas os senhores estão fora de moda. Os senhores que falam pouco, raramente sorriem e não dão confiança ao seu próximo. Os senhores que...não os suja a mosca, andam com um passo forçadamente cadenciado e...vestem bem. A hora é de simplicidade! Muita simplicidade. Mas ainda há quem saia de casa, depois de uma olhadela ao espelho para ver se está “impecável”, entra nos estabelecimentos como quem se propõe comprar tudo e mais alguma coisa pagando a dobrar e trata o seu semelhante como se este sofresse de qualquer forma de desonrosa diminuição. Não, senhores importantes, digo-lhes então, com o saber de larga experiência feito, que estão completamente fora de moda. E que, se com o vosso ar pretendem impor-se saibam que são aqueles que vestem com simplicidade, andam com simplicidade, falam com simplicidade, numa palavra, vivem com simplicidade, que justamente se impõem. Os pavões reais foram compreensivelmente ultrapassados por bandos de aves laboriosas, empenhadas em fazer mais qualquer coisa do que...pavonearem-se.
Maria Carlota Álvares da Guerra, Crónica Feminina, 26 de Agosto 1976
 
 
A importância de um viver tranquilo
Mais do que a fortuna, do que a felicidade e até do que a saúde das pessoas, está a tranquilidade, a serenidade com que se vivem os dias, sem esforços inúteis nem tropeções desagradáveis. Infelizmente, porém, hoje em dia, cada vez menos se vive tranquila e serenamente, porque, de hora a hora, se verifica um enervamento colectivo, que impede as relações normais dos seres humanos. A coisa é tão grave que, ao contrário do que anteriormente se verificava, as pessoas reconhecem esse tal enervamento, e solidarizam-se, às vezes, confessando-o, passando assim a uma posição de fraternidade, que simplifica as coisas. Senão vejamos: uma senhora entra num táxi e imediatamente se estabelece uma dessas pegas diárias, que passaram a ser “prato obrigatório” do nosso viver. Motivo de “lana caprina” como habitualmente. Levou muito tempo a entrar, bater com a porta, não explicou bem a morada, que sei eu? Qualquer razão foi fútil como a outra. Caso foi que a passageira, cansada de tudo aquilo, comentou: “Seja como for. Não fôssemos nós dois dos muitos milhões de enervados que andam pelo mundo e não estaríamos aqui a discutir”. O homem olhou para trás, ao dar-me o troco da paga, e observou: “poucas vezes ouço palavras tão acertadas. Tem a senhora muita razão. Por minha parte, vou tentar moderar-me”. E a passageira saiu do carro, por sua vez, carregada de boas intenções mas convencida, com certa tristeza, que é impossível pô-las em prática.
Maria Carlota Álvares da Guerra, Crónica Feminina, 5 de Agosto 1976
 
 
As pessoas ou quase.
É nos momentos difíceis que se conhecem as pessoas. É neles que se avalia o seu grau de competência ou de virtude humana. As pessoas por tudo o que tem acontecido à sua volta nestes últimos tempos, graduam-se um pouco pelo baixo, dado que as condições de vida lhes não permitem valorizar-se devidamente. Mas o momento vem em que se revelam tal como são, deixando-nos, por vezes, bem admirados quanto à importância que podem ter. Assim nos é dado, então, apreciá-las e reconhecer o papel que podem desempenhar não só na vida como no mundo. Do mais humilde ao mais importante, cada um pode, com efeito, destinar-se a uma missão. E se na rotina do quotidiano isso pode não se sentir, no dia “h”, e eles vão surgindo, porque ao menos a vida deixou de ser sensaboria, se as pessoas têm valor humano, lá se revelam e cumprem o que têm para cumprir. Infelizmente, porém, as quase pessoas continuam a existir. E não é por isso que o mundo não tomba. Mas por isso que tomba.
Maria Carlota Álvares da Guerra, Crónica Feminina, 8 de Julho 1976
 
 
Os trapos, os trapos!
Cruzei com um daqueles meninos de dois anos, um pouco pançudinhos, loiro como o trigo, que logo acenam com a maõzinha um gesto de adeus, que mostram os dentinhos num sorriso, lindo, lindo e simpático e tudo quanto há... Ao aproximar-me disse: “És lindo, lindo, um amor!” E a mãe, ou avó, ou tia, ou o que quer que fosse, sorriu embevecida e respondeu: “É muito lindo o fatinho, não é?” Sinceramente senti-me enfurecer, mas nada respondi àquela mulher como há milhões, que só vibram com os desgraçados trapos que a gente põe em cima do corpo. Não realizava aquela triste que tinha ali um anjo, de carne, cabelos, olhos, tudo, um anjo vivo, loiro, doce, esperto, simpático, ainda por cima. A única coisa que a desvanecia era o fatinho que eu nem sequer vi, que não me interessava nada, porque importante , bonito, gracioso, era o que estava por dentro dele. Mas ela não se apercebia disso, o fatinho, o fatinho é que era importante. Risonho, o menino lindo, virou-se todo para corresponder ao meu sorriso, levantou a mãozinha, disse adeus, sorriu mais, sobrepôs-se, sem dificuldade aquele pretensiosismo pelintra. E continuou a andar, voltadinho para trás, sacudindo a cabecinha loira, dando às perninhas rechonchudas e rosadas. Nem sequer fiquei triste porque pior do que isso vi eu, uma vez uma mãe fazer, obrigando a filha a engolir um gelado, “para não se sujar”. A menina ia morrendo. Por causa do vestido. E a mãe que também ia morrendo de susto, quando teve de levar a filha para o hospital, nem sequer se lembrou que “tinha sido para não sujar o vestido” que se ia dando aquela tragédia. Os trapos, os trapos...
Maria Carlota Álvares da Guerra, Crónica Feminina, 16 de Julho 1983


Agradeço a Rita Lello a cedência destes textos. 

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