Então a treva encheu-se de pequenos pontos brilhantes, avermelhados e vivos.
Eram os olhos dos lobos.
Cavaleiro ouvia-os moverem-se em leves passos sobre a neve, sentia a sua respiração ardente e ansiosa, adivinhava o branco cruel dos seus dentes agudos.
Em voz alta disse:
— Hoje é noite de trégua, noite de Natal.
E ao som destas palavras os olhos recuaram e desapareceram.
Mais adiante ouviu-se o ronco dum urso.
O Cavaleiro estacou a sua montada e a fera aproximou-se. Vinha de pé e pousou as patas da frente no pescoço do cavalo.
O homem ouviu-o respirar, sentiu o seu pêlo tocar-lhe a mão e viu a um palmo de si o brilho dos pequenos olhos ferozes.
E em voz alta disse:
— Hoje é noite de trégua, noite de Natal.
Então o bicho recuou pesadamente e grunhindo desapareceu.
E o Cavaleiro entre silêncio e treva continuou a caminhar para a frente.
Caminhava ao acaso, levado por pura esperança, pois nada via e nada ouvia. As ramagens roçavam-lhe a cara e caminhava sem norte e sem oriente.
O cavalo enterrava-se na neve e avançava muito devagar. Até que de repente parou. O homem tocou-o com as esporas mas ele continuou imóvel e hirto.
— Vou morrer esta noite — pensou o Cavaleiro —.
Então lembrou-se da grande noite azul de Jerusalém toda bordada de constelações. E lembrou-se de Baltasar, Gaspar e Melchior, que tinham lido no céu o seu caminho. O céu aqui era escuro, velado, pesado de silêncio. Nele não se ouvia nenhuma voz nem se via nenhum sinal. Mas foi em frente desse céu fechado e mudo que o Cavaleiro rezou.
Rezou a oração dos Anjos, o grande grito de alegria, de confiança e de aliança que numa noite antiquíssima tinha atravessado o céu transparente da Judeia. As palavras ergueram-se uma por uma no puro silêncio da neve:
— Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade.
Então na massa escura dos arvoredos começou ao longe a crescer uma pequena claridade.
— Deus seja bendito — murmurou o Cavaleiro —. Deve ser uma fogueira. Deve ser algum lenhador perdido como eu que acendeu uma fogueira. A minha reza foi ouvida. Junto dum lume e ao lado de outro homem poderei esperar pelo nascer do dia.
O cavalo relinchou. Também ele tinha visto a luz. E reunindo as suas forças, o homem e o animal recomeçaram a avançar.
A luz continuava a crescer e à medida que crescia, subindo do chão para o céu, ia tomando a forma dum cone.
Era um grande triângulo radioso cujo cimo subia mais alto do que todas as árvores.
Agora toda a floresta se iluminava. Os gelos brilhavam, a neve mostrava a sua brancura, o ar estava cheio de reflexos multicolores, grandes raios de luz passavam entre os troncos e as ramagens.
— Que maravilhosa fogueira — pensou o Cavaleiro —.
Nunca vi fogueira tão bela.
Mas quando chegou em frente da claridade viu que não era uma fogueira. Pois era ali a clareira de bétulas onde ficava a sua casa. E ao lado da casa, o grande abeto escuro, a maior árvore da floresta, estava coberta de luzes. Porque os anjos do Natal a tinham enfeitado com dezenas de pequeninas estrelas para guiar o Cavaleiro.
Esta história, levada de boca em boca, correu os países do Norte. E é por isso que na noite de Natal se iluminam os pinheiros."
Assim termina o livro O Cavaleiro da Dinamarca, de Sophia de Mello Breyner Andresen... o livro da minha vida.
1 comentário:
feliz natal:
http://www.juraemprosaeverso.com.br/FotografiasEDesenhos/Estrelas/039-TapetedeEstrelas.jpg
Enviar um comentário