domingo, julho 24, 2011

As Alsácias da Revolução, por Vera Lagoa


Os tempos mudam. As Alsácias são as mesmas. Os regimes mudam. As Alsácias são as mesmas. Os Amadeus não. Esses mudam com os regimes. Já não são os mesmos.
Para quem tenha a memória fraca, lembro que Alsácia e Amadeu foi o casal com que, durante o fascismo, tentei retratar a pequena burguesia portuguesa, aquela que dizia: "Política? Deus me livre". Aquela que hoje diz: "Política? Evidentemente que sim. Eu até fui militante durante (suponhamos) vinte e três anos!".
Pois o casal seria militante. Mas disfarçava muito bem.
O casal, que passou a vida a sonhar em ir a um "cocktail" do "Ritz", realizou agora o seu sonho. Não faltam "cocktails" no "Ritz" - ou coisa parecida - oferecidos pelas embaixadas do Leste. E a esses, sim, a esses as Alsácias têm acesso.
Mas... agora é que chegámos ao momento crítico. Como se deve vestir a D. Alsácia? Quem a poderá aconselhar?
E a Alsácia vê-se reduzida à sua imaginação. Pois bem. Para que tem ela lá em casa a arca de cânfora?
Deve ser de vestido comprimido. Elas adoram o vestido comprido.
Vamos a isso. O chailinho - ou "écharpe" - em "lamé" (tecido que sempre foi muito apreciado pelas Alsácias de todos os tempos) e a carteirinha de missanga que o marido comprou nos chinas quando esteve na guerra colonial.

Ah! A guerra colonial! Que saudades!
Saudades do Mussa. Saudades do Zacarias.
Sim. Porque o marido da Alsácia esteve na
guerra colonial mas sempre sem fazer mal
a ninguém. Que ideia! Até o Mussa e o Za-
carias "adoravam" o senhor comandante.
Imaginem que uma vez o senhor coman-
dante chegou a pôr tintura de iodo na perna
do Mussa! Não acreditam? Pois é verdade.
Embora as vizinhas dissessem que aquilo
tinha sido duma canelada da D. Alsácia,
numa daquelas sessões de dinamização
cultural da época em que esses métodos
indutivos eram largamente aplicados. Bons
tempos, meu patrão.

Voltemos ao assunto. Claro que depois do regresso, depois do 25, depois da paz, o aspirador comprado a prestações substitui o Mussa. E com vantagem. Não usa tintura de iodo.
Onde ia? Pois. No "cocktail". Põe a Alsácia o chailinho (ou a "écharpe") de "lamé", a carteirinha de missanga e pedem-se uns anéis emprestados. Porque aquele colar feito com as pérolas que vêm na lata, já toda a gente tem. E as outras Alsácias que lá estão conhecem a coisa.
Chegadas que são à reunião, é um bocado difícil adaptarem-se. Falta de hábito de "cocktails" ou desconhecimento da etiqueta do Leste. Mas logo que se encontra a Alsácia com outra (abundam por lá), quero dizer, por cá, começam logo a falar de caril (de cabrito). E discutem as várias maneiras de o servir (ao cabrito). Saudosamente recordam o marisco (colonial).
E conversam muito. Contam como passam as noites quando os maridos têm aquelas longas reuniões. Umas vão para casa das vizinhas ver televisão, outras para casa da mamã. Têm medo dos ladrões.

Tem graça! Julguei que depois de terem
o Valadão preso onze meses sem julga-
mento, tinham acabado os ladrões em Por-
tugal!

Ora. Mas daquela conversa no "cocktail" do Leste sempre resulta alguma coisa. Lembram-se subitamente (e muito bem) de contratarem como treinadora para aqueles efeitos a mulher dalgum saneado que procura desesperadamente um emprego. Paga-se-lhe qualquer coisa e ela - por pouco que saiba - daquilo sabe concerteza. E, assim, da próxima vez não estarão todas com o chailinho (ou "écharpe") de "lamé" e a carteirinha de missanga. Vai ser um êxito! Sim, porque aqueles tipos do Leste (criaturas esquisitas!) já tinham perguntado ao senhor comandante se aquela roupa era obrigatória nas festas como a ganga na rua. O senhor comandante viu-se aflito para explicar, mas isso é uma situação em que se contra muitas vezes. Ouvi para aí murmurar...
Quem falou aí no Mussa? Pois fiquem sabendo que ele, lá em casa, era tratado como pessoa de família!

P. S. Esqueci-me de dizer - e era um lapso imperdoável - que estas Alsácias post 25 de Abril, se esforçam por serem fotografadas para a revista "Gente". E conseguem.

Vera Lagoa, Crónicas do Tempo - 5/6/75 - 2/10/75, Livraria Internacional, 1975

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