O meu querido amigo Paulo Silveira e Sousa, juntamente com duas das maiores figuras da intelligenza nacional - Maria de Fátima Bonifácio e Maria Filomena Mónica -, redigiram uma carta onde contestam o encerramento por nove meses da Biblioteca Nacional e a inexpilcável falta de alternativas. Publicado no Diário de Notícias no sábado, 17 de Julho de 2010, o texto contesta algumas notícias e artigos que atribuíam a parte da comunidade científica portuguesa uma teimosa oposição às obras de construção e renovação dos depósitos da Biblioteca Nacional. Todavia, não é o caso.
"Nós, Leitores, e o Encerramento da Biblioteca Nacional
Após várias notícias e artigos publicados na imprensa relativos ao encerramento dos serviços de leitura da Biblioteca Nacional (BN), gostaríamos de destruir algumas ideias atribuídas aos investigadores que questionaram o processo de encerramento da BN. É, entre nós, consensual que as obras de ampliação e remodelação da BN são necessárias. Sabemos que, ao reabrir, a 1 de Setembro de 2011, a instituição reunirá melhores condições para responder às solicitações. O problema diz respeito à forma como foi planeado o seu encerramento. Quem abaixo assina está contra o fecho, por cerca de dez meses, da totalidade do fundo da Sala de Leitura Geral e não, naturalmente, contra as obras de requalificação.
Dizer o contrário é faltar à verdade. A apresentação dogmática de uma, e apenas uma, forma de proceder à transferência dos fundos, como se não houvesse alternativa, merece objecção. A nosso ver, a condução do processo negligenciou os leitores e o facto, importante, de a BN prestar um serviço público. Por exemplo, hospitais e aeroportos são, igualmente, remodelados, todavia não encerram. Por outro lado, há, no estrangeiro, exemplos de outras bibliotecas que migram para edifícios novos, fechando por partes ou durante períodos curtíssimos. Veja-se o caso da British Library, em Londres, ou da Bibliothèque Nationale de France, em Paris.
As notícias e os artigos de opinião publicados tendem a descrever os signatários do abaixo-assinado, recentemente organizado contra o encerramento da BN, como uma casta de privilegiados, ainda por cima birrentos, que não querem ver alterados os seus hábitos de trabalho. Ora, muitos de nós trabalham em várias bibliotecas e arquivos, em Portugal e no estrangeiro, e não apenas na BN. Sabemos do que falamos.
Ao contrário do que afirma a sub-directora da BN, a investigação científica em Portugal vai ser prejudicada, sobretudo nas áreas da História e das Ciências Sociais. Para além de periódicos, o fundo da Sala de Leitura Geral inclui títulos do século XVI ao século XXI. Todos os investigadores serão afectados, e não apenas os que trabalham sobre períodos mais recentes. A doutora Maria Inês Cordeiro pode não conhecer a Hemeroteca Municipal ou a Biblioteca do Palácio Galveias, mas nós sabemos onde ficam e as deficiências que apresentam. Do mesmo modo, pode desconhecer as formas misteriosas como funciona o Depósito Legal (uma obrigação criminosamente esquecida por empresas tipográficas, editoras e autores), mas os investigadores constatam diariamente a ausência de livros, antigos e recentes, que deveriam constar nos fundos das Bibliotecas. Por isso, quando a sub-directora da BN afirma que «há excelentes bibliotecas públicas e universitárias», só podemos interrogar há quanto tempo a doutora Maria Inês Cordeiro não vai - como leitora, naturalmente - a uma dessas “excelentes bibliotecas”, que infelizmente não chegam a contar-se pelos dedos de uma mão.
Se a sub-directora da BN é perita nos labirintos bibliotecários e nós uns ignorantes leitores, diga-nos, por favor, qual a percentagem de obras que apenas existem na BN e às quais o acesso irá portanto ficar vedado e, já agora, qual a percentagem do fundo que existe igualmente em Coimbra ou no Porto (locais para onde os funcionários da BN nos irão, presume-se, reencaminhar). E quem fala de livros, fala de periódicos, uma área onde a incúria nacional é escandalosa. Seriam estas as interrogações que deveriam ter sido atendidas pela direcção da BN, antes de ter decidido o fecho.
Desde há décadas que os decisores políticos têm tratado o sector das bibliotecas e arquivos com negligência. As chamadas «ciências documentais» apenas vieram reforçar a gestão burocrática que substituiu uma direcção assegurada por quem tem formação humanista. Pessoas há, como a doutora Isabel Pires de Lima, ex-ministra da Cultura, que consideram que tudo se resolve com mais cimento e que, provavelmente com sinceridade, julgam que os críticos são velhos que resistem ao maravilhoso mundo do investimento público (DN de 14.07.2010).
Não é esse o caso: queremos, desejamos, obras na BN, incluindo naturalmente locais adequados à preservação dos livros e manuscritos. Mas o processo de reestruturação seguido não é aceitável. Não tendo experiência directa de trabalho nestes locais, a doutora Isabel Pires de Lima deveria ter-se informado do que a BN contém. Em vez disso, limitou-se a fazer um frete político, afirmando que o movimento de crítica - aliás reduzido a um abaixo-assinado – mais não era de uma conspiração de «bloquistas», para mais, alfacinhas.
Este ódio ao Bloco de Esquerda – de que nenhum dos signatários é membro - é um assunto que os apoiantes do Partido Socialista têm de resolver com os respectivos psicanalistas.
Para nós, trata-se apenas de não impedir que a investigação em Portugal prossiga durante um tempo insuportavelmente longo. Ao contrário do que parece supor a Doutora Isabel Pires de Lima, frequentamos as bibliotecas e os arquivos de Lisboa, Porto, Coimbra, Évora e Ponta Delgada. Congratulamo-nos até com o facto de os interesses intelectuais da doutora Isabel Pires de Lima (a hermenêutica da poesia de Fradique Mendes e os versos «fosforescentes» de Eugénio de Andrade) estarem disponíveis em edições correntes, eximindo-a de frequentar as salas de leitura da BN.
Outro argumento falacioso, repetido nos jornais, prende-se com a Biblioteca Vaticana, fechada há vários anos. Este facto foi referido pela sub-directora, doutora Maria Inês Cordeiro, numa notícia que saiu no Público (25.06.2010). Não vale a pena entrar na discussão sobre as especificidades do Estado do Vaticano, mas gostaríamos de lembrar que em Roma, onde fica o dito Estado, existe aberta, e em funcionamento, a Biblioteca Nazionale Centrale di Roma. Ou seja, quem vive em Roma ou em Itália tem alternativa.
Nota-se, na forma como foi anunciado o encerramento, o desprezo pelos leitores. A BN nem sequer projectou a criação de uma sala provisória que pudesse acolher os pedidos de quem tem prazos académicos, financiamentos de projectos aprovados ou livros a entregar a editoras. Curiosamente, esse espaço existe: a antiga sala dos periódicos e o espaço da antiga livraria, ambos desactivados, poderiam servir para tal. Se a BN sabe que os pisos com mais pedidos são o 3.º, 4.º e 5.º, porque não foi previsto, para estes, um fecho por um período curto? Mais, se sabia, pelos vistos há anos, que iria ocorrer um longo período de encerramento (a obra foi adjudicada em 2008), porque não intensificou a digitalização das obras fundamentais?
Na década de 1990, quando o Arquivo Nacional da Torre do Tombo mudou do Parlamento para o Campo Grande, ouviu os seus leitores, pelo que tudo correu de forma aceitável. Quando a BN mudou de São Francisco para o Campo Grande, em 1969, a transferência demorou seis meses. Agora, a BN não estudou uma alternativa, porque não tem peso político, porque ninguém quer saber do que se passa nas bibliotecas e porque o Ministério da Cultura não previu a verba que permitiria acelerar o processo. Sem dinheiro, a BN teve de planear tudo da forma mais barata possível, imaginando que os leitores – que, pela sua natureza, são pouco dados a revoltas – não seriam capazes de contestar. Enganaram-se.
Lisboa, 15 de Julho de 2010
Maria Filomena Mónica
Maria de Fátima Bonifácio
Paulo Silveira e Sousa"
"Nós, Leitores, e o Encerramento da Biblioteca Nacional
Após várias notícias e artigos publicados na imprensa relativos ao encerramento dos serviços de leitura da Biblioteca Nacional (BN), gostaríamos de destruir algumas ideias atribuídas aos investigadores que questionaram o processo de encerramento da BN. É, entre nós, consensual que as obras de ampliação e remodelação da BN são necessárias. Sabemos que, ao reabrir, a 1 de Setembro de 2011, a instituição reunirá melhores condições para responder às solicitações. O problema diz respeito à forma como foi planeado o seu encerramento. Quem abaixo assina está contra o fecho, por cerca de dez meses, da totalidade do fundo da Sala de Leitura Geral e não, naturalmente, contra as obras de requalificação.
Dizer o contrário é faltar à verdade. A apresentação dogmática de uma, e apenas uma, forma de proceder à transferência dos fundos, como se não houvesse alternativa, merece objecção. A nosso ver, a condução do processo negligenciou os leitores e o facto, importante, de a BN prestar um serviço público. Por exemplo, hospitais e aeroportos são, igualmente, remodelados, todavia não encerram. Por outro lado, há, no estrangeiro, exemplos de outras bibliotecas que migram para edifícios novos, fechando por partes ou durante períodos curtíssimos. Veja-se o caso da British Library, em Londres, ou da Bibliothèque Nationale de France, em Paris.
As notícias e os artigos de opinião publicados tendem a descrever os signatários do abaixo-assinado, recentemente organizado contra o encerramento da BN, como uma casta de privilegiados, ainda por cima birrentos, que não querem ver alterados os seus hábitos de trabalho. Ora, muitos de nós trabalham em várias bibliotecas e arquivos, em Portugal e no estrangeiro, e não apenas na BN. Sabemos do que falamos.
Ao contrário do que afirma a sub-directora da BN, a investigação científica em Portugal vai ser prejudicada, sobretudo nas áreas da História e das Ciências Sociais. Para além de periódicos, o fundo da Sala de Leitura Geral inclui títulos do século XVI ao século XXI. Todos os investigadores serão afectados, e não apenas os que trabalham sobre períodos mais recentes. A doutora Maria Inês Cordeiro pode não conhecer a Hemeroteca Municipal ou a Biblioteca do Palácio Galveias, mas nós sabemos onde ficam e as deficiências que apresentam. Do mesmo modo, pode desconhecer as formas misteriosas como funciona o Depósito Legal (uma obrigação criminosamente esquecida por empresas tipográficas, editoras e autores), mas os investigadores constatam diariamente a ausência de livros, antigos e recentes, que deveriam constar nos fundos das Bibliotecas. Por isso, quando a sub-directora da BN afirma que «há excelentes bibliotecas públicas e universitárias», só podemos interrogar há quanto tempo a doutora Maria Inês Cordeiro não vai - como leitora, naturalmente - a uma dessas “excelentes bibliotecas”, que infelizmente não chegam a contar-se pelos dedos de uma mão.
Se a sub-directora da BN é perita nos labirintos bibliotecários e nós uns ignorantes leitores, diga-nos, por favor, qual a percentagem de obras que apenas existem na BN e às quais o acesso irá portanto ficar vedado e, já agora, qual a percentagem do fundo que existe igualmente em Coimbra ou no Porto (locais para onde os funcionários da BN nos irão, presume-se, reencaminhar). E quem fala de livros, fala de periódicos, uma área onde a incúria nacional é escandalosa. Seriam estas as interrogações que deveriam ter sido atendidas pela direcção da BN, antes de ter decidido o fecho.
Desde há décadas que os decisores políticos têm tratado o sector das bibliotecas e arquivos com negligência. As chamadas «ciências documentais» apenas vieram reforçar a gestão burocrática que substituiu uma direcção assegurada por quem tem formação humanista. Pessoas há, como a doutora Isabel Pires de Lima, ex-ministra da Cultura, que consideram que tudo se resolve com mais cimento e que, provavelmente com sinceridade, julgam que os críticos são velhos que resistem ao maravilhoso mundo do investimento público (DN de 14.07.2010).
Não é esse o caso: queremos, desejamos, obras na BN, incluindo naturalmente locais adequados à preservação dos livros e manuscritos. Mas o processo de reestruturação seguido não é aceitável. Não tendo experiência directa de trabalho nestes locais, a doutora Isabel Pires de Lima deveria ter-se informado do que a BN contém. Em vez disso, limitou-se a fazer um frete político, afirmando que o movimento de crítica - aliás reduzido a um abaixo-assinado – mais não era de uma conspiração de «bloquistas», para mais, alfacinhas.
Este ódio ao Bloco de Esquerda – de que nenhum dos signatários é membro - é um assunto que os apoiantes do Partido Socialista têm de resolver com os respectivos psicanalistas.
Para nós, trata-se apenas de não impedir que a investigação em Portugal prossiga durante um tempo insuportavelmente longo. Ao contrário do que parece supor a Doutora Isabel Pires de Lima, frequentamos as bibliotecas e os arquivos de Lisboa, Porto, Coimbra, Évora e Ponta Delgada. Congratulamo-nos até com o facto de os interesses intelectuais da doutora Isabel Pires de Lima (a hermenêutica da poesia de Fradique Mendes e os versos «fosforescentes» de Eugénio de Andrade) estarem disponíveis em edições correntes, eximindo-a de frequentar as salas de leitura da BN.
Outro argumento falacioso, repetido nos jornais, prende-se com a Biblioteca Vaticana, fechada há vários anos. Este facto foi referido pela sub-directora, doutora Maria Inês Cordeiro, numa notícia que saiu no Público (25.06.2010). Não vale a pena entrar na discussão sobre as especificidades do Estado do Vaticano, mas gostaríamos de lembrar que em Roma, onde fica o dito Estado, existe aberta, e em funcionamento, a Biblioteca Nazionale Centrale di Roma. Ou seja, quem vive em Roma ou em Itália tem alternativa.
Nota-se, na forma como foi anunciado o encerramento, o desprezo pelos leitores. A BN nem sequer projectou a criação de uma sala provisória que pudesse acolher os pedidos de quem tem prazos académicos, financiamentos de projectos aprovados ou livros a entregar a editoras. Curiosamente, esse espaço existe: a antiga sala dos periódicos e o espaço da antiga livraria, ambos desactivados, poderiam servir para tal. Se a BN sabe que os pisos com mais pedidos são o 3.º, 4.º e 5.º, porque não foi previsto, para estes, um fecho por um período curto? Mais, se sabia, pelos vistos há anos, que iria ocorrer um longo período de encerramento (a obra foi adjudicada em 2008), porque não intensificou a digitalização das obras fundamentais?
Na década de 1990, quando o Arquivo Nacional da Torre do Tombo mudou do Parlamento para o Campo Grande, ouviu os seus leitores, pelo que tudo correu de forma aceitável. Quando a BN mudou de São Francisco para o Campo Grande, em 1969, a transferência demorou seis meses. Agora, a BN não estudou uma alternativa, porque não tem peso político, porque ninguém quer saber do que se passa nas bibliotecas e porque o Ministério da Cultura não previu a verba que permitiria acelerar o processo. Sem dinheiro, a BN teve de planear tudo da forma mais barata possível, imaginando que os leitores – que, pela sua natureza, são pouco dados a revoltas – não seriam capazes de contestar. Enganaram-se.
Lisboa, 15 de Julho de 2010
Maria Filomena Mónica
Maria de Fátima Bonifácio
Paulo Silveira e Sousa"
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