quinta-feira, setembro 17, 2009

Deborah Kristal e Fernando Santos - A História e a Entrevista - Revista Time Out


De dia, Fernando Santos, 46 anos, homem tímido. À noite, no palco, Deborah Kristal, rainha da noite de Lisboa. Encostamo-nos ao balcão do Finalmente Club, à uma da manhã, à espera dele. Chega muito discretamente, pela mesma porta por onde entram os clientes. Irreconhecível, sem as plumase a purpurina. Leva-nos até ao camarim, ali ao lado. Mais apertado que o 58 à hora de ponta. Conversamos, enquanto chegam, para se maquilharem, os outros três travestis que o acompanham em palco: Betty Brown, Nyma e Samantha Rox. Fernando Santos tem ascendente. É o director artístico da casa. A sua personagem é a anfitriã dos espectáculos que todas as noites, às três da manhã, fazem encher a discoteca da Rua da Palmeira.
Vêm pessoas de toda a espécie, não só gays, para ver um show que é qualquer coisa entre o teatro de revista e os musicais de casino. Esperam que se abram as pobres cortinas e comecem a piscar as luzes em volta do palco, à moda dos concursos da RTP de má memória – a mística da coisa está toda nisto. Durante uma hora, há canções desgraçadas e orgulhosas. Êxito de bilheteira sempre assegurado.
Fernando Santos é artista há mais de 25 anos. Aos 17, largou a escola e arranjou emprego num pronto-a-vestir da Avenida de Roma. Um amigo cabeleireiro, com quem saía à noite, sugeriu-lhe uma vez que fosse trabalhar para a Fórmula Um, uma boîte na Amadora onde havia shows de travesti. Ele nunca tinha pensado numa coisa dessas, mas arregalou os olhos quando percebeu que era ali que tinha a independência financeira e a liberdade que procurava. Estreou-se como Susy Flower. Na época, início dos anos 80, Lisboa era um paraíso de travestis: só no Príncipe Real, recorda Fernando Santos, havia cinco casas com espectáculos regulares.
Em 1984, adoptou o nome Deborah Snake e passou para o Finalmente. Mas só por dois meses. Não gostou do ambiente e saiu. Andou em digressão, por bares, casinos e cabarets da Europa, e voltou ao Finalmente em 1994, já como Deborah Kristal e director artístico. Saiu mais uma vez em 1996. E regressou em 2000.
Mais do que travesti, considera-se actor. “Não é uma pretensão, são as pessoas que me dizem. E como não é uma nem duas, sou levado a concluir que é verdade e que não estou aqui para fazer de mulher só porque tenho uma pancada qualquer”, ironiza. De vez em quando, aparece noutros palcos, como o da discoteca Mister Gay, na Costa da Caparica. E é convidado para fazer cinema e teatro. Faz de Edgar no novo filme de Luís Filipe Rocha, A Outra Margem, que se estreia esta quinta-feira. E em Junho esteve na peça Desempacotando a Minha Biblioteca, na Gulbenkian.
O à-vontade com que dança e faz playback de divas como Shirley Bassey, Isabel Pantoja ou Rocío Jurado, as suas preferidas, é tudo representação. E o momento final do show, em que chama ao palco alguns espectadores, também. Eles (e elas) costumam ir a medo, mas Deborah Kristal trata-os sempre bem. “É tudo de improviso”, garante. “E mais não digo, é segredo. Os meninos novos [que querem ser travestis] que aprendam e batalhem como eu fiz.” O difícil, no entanto, não é isso. Nem o acertar com o playback. Nem o desenhar os vestidos, para uma costureira da Avenida da Liberdade fazer. “O que custa é ser homem e conseguir ter em palco tanta sensibilidade como uma mulher, ou mais ainda. É uma arte.” E, depois, é preciso não deixar que fora do palco os papéis se confundam. “Talvez nos primeiros tempos isso me tenha acontecido e hoje encontro nos mais novos alguma dessa confusão entre feminino e masculino.”
Ao fim de tantos anos, Fernando Santos está cansado da rotina e quer dar lugar às novas. “Estou a pensar transformar a minha vida mais uma vez”, confessa. “Esta casa garante-nos trabalho todos os dias, mas não tem condições para fazer um espectáculo que me realize e ultrapasse os meus limites.” Em breve, promete esquecer o travesti e dedicar-se só à produção de espectáculos.
Bruno Horta
quinta-feira, 25 de Outubro de 2007

Fernando Santos, 48 anos, conhecido na noite lisboeta como Deborah Kristal, dá corpo a Tónia em Morrer Como um Homem, a nova longa-metragem de João Pedro Rodrigues. Será projectada pela primeira vez em Portugal esta sexta-feira, dia 18, às 22 horas, como filme de abertura do Queer Lisboa, festival de cinema gay e lésbico (no Cinema São Jorge até ao dia 26). A estreia nas salas comerciais está prevista para Outubro.
Trata-se do terceiro filme em que Fernando Santos participa, depois de A Raiz do Coração (2000), de Paulo Rocha, e A Outra Margem (2007), de Luís Filipe Rocha. Desta vez, é protagonista.
Tónia é travesti e namora com Rosário, um heroinómano que quer que ele mude sexo. “Vais ficar sempre assim? Não és carne nem peixe. És um homem com mamas”, diz-lhe Rosário. Tónia resiste à ideia, mas aos poucos torna o seu corpo mais feminino. Será essa a sua tragédia.
Este filme vai pôr muita gente a pensar que, no fundo, todos os travestis gostariam de ser mulheres. Será assim? Muitas pessoas começam a fazer travesti porque têm de facto necessidade de exteriorizar o seu lado feminino. Com os anos, talvez tenham a sorte de saber separar as águas e perceber, como costumo dizer, que de homem não passam e a mulher não chegam. O travesti é uma arte e uma profissão, mas nem todos percebem isso.
Dá por si a chamar a atenção aos novatos que confundem transformismo com identidade sexual? Sem dúvida, muitas vezes. Comecei numa época [início dos anos 80] em que havia meia dúzia de referências que trabalhavam sem essa ideia de feminino fora do palco, mas nem todos têm a mesma sorte.
A vida terrível da personagem Tónia tem alguma coisa que ver com a realidade de hoje ou é um retrato dos loucos anos 80? Já é muito difícil encontrar tanta desgraça. Hoje as pessoas têm mais informação, têm outra cabeça.
E a parte da inveja entre travestis, que também vemos no filme. É passado? Infelizmente ainda acontece. É muito difícil conviver com isso quando se chega a determinado patamar da vida. Isso é feito às vezes de forma muito subtil e perigosa. Mesmo os travestis que já cá andam há alguns anos têm o ego lá em cima, o que é um grande problema.
A Tónia é inspirada na travesti Ruth Bryden [falecida há dez anos]? O fim de vida da Tónia é, sem dúvida, idêntico ao da Ruth Bryden, mas também é o fim de muitos outros travestis. Conheci muitas pessoas ao longo destes anos que podem ser a Tónia. A Ruth Bryden foi apenas o mote para o realizador. Há ali coisas que eu próprio vivi no auge da minha juventude, quando tinha 20 anos e fazia todas as loucuras dessa idade.
Que loucuras eram essas? A bebida, as noitadas, as drogas, o sexo. Fazia eu e faziam os actores e as coristas do Parque Mayer, com quem eu lidava. Ninguém ia para artista para se deitar às nove da noite e acordar às sete da manhã.
Mas hoje é muito certinho. Claro, se tivesse continuado não estaria aqui. Não bebo, não fumo, não me drogo, não faço nada, sou a pessoa mais careta do mundo.
Já conhecia o realizador? Não, nem sabia quem ele era. Foi um amigo comum que nos apresentou. Ele fez muita pesquisa com muitos travestis, quer os que são artistas, quer os que são prostitutos. Nas primeiras abordagens, eu não imaginava que ele me queria para fazer um filme. Estava apenas na fase da pesquisa, queria saber da minha história de vida, das minhas memórias, de situações trágicas ou engraçadas.
E já tinha visto algum filme dele? Nunca. O João Pedro Rodrigues é um excelente profissional, mas eu sou muito romântico e ele vai buscar para os filmes o lado mais difícil da vida. Não preciso mais disso. Quero continuar a alimentar a minha ingenuidade, se é que ainda posso fazê-lo nesta idade.
Vê este filme como o ponto alto da sua vida artística? É um agridoce. É como se o destino estivesse a pôr-me frente àquilo que já vivi e a dar-me razão quando tento fugir do estereótipo do que é um travesti. Acho que o filme é tão realista que assusta. Um travesti está todos os dias rodeado de pessoas embriagadas dentro de um bar, que vivem o dia-a-dia e vão ali descarregar as suas mágoas e frustrações. Essas pessoas projectam em nós aquilo que gostariam de ser e por isso dizem que somos as rainhas da noite e as maiores. Se eu fosse acreditar nisso, viveria numa mentira.
terça-feira, 15 de Setembro de 2009


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