Há fenómenos extraordinários que não se explicam... ou talvez se possam. Este de que vos irei falar talvez se consiga.
Falo-vos dos 12 anos em cartaz da peça de teatro As Obras Completas de William Shakespeare em 97 minutos, em cena desde então no Teatro Estúdio Mário Viegas, em Lisboa. E do impressionante número de 200.000 (duzentos mil) espectadores, atingidos em 03 de Agosto de 2009. E do não menos incrível número de digressões: 154. Trata-se do maior sucesso teatral de sempre em Portugal, em longevidade, público e digressões.
Como é que uma peça de teatro consegue manter, durante tanto tempo, o interesse do público, mantendo a frescura, a surpresa e a saudável "loucura", criando este enorme êxito?
Em primeiro lugar, o nome da peça. William Shakespeare é um nome por todos reconhecido mesmo para aqueles que julgam que Gil Vicente é apenas um clube de futebol. E ainda por cima, em 97 minutos, vêem-se as peças todas. E é assaz sabido que o português gosta disso. Despachar tudo no menor tempo possível. Afinal de contas, quantos de nós leram realmente os Os Lusíadas de Camões ou os Maias do Eça de uma ponta a outra? Muito poucos eu diria. Quem teve de ler na escola estes dois "calhamaços" fê-lo com toda a certeza pelos livrinhos fininhos de capa amarela e preta da Europa-América que resume tudo e ainda nos dá umas dicas de resposta para qualquer pergunta saida num exame. Tudo no menor esforço.
Depois, claro está, o sucesso da peça deve-se a Juvenal Garcês. Homem de teatro no sangue, fundou com Mário Viegas a Companhia Teatral do Chiado sendo esta peça a melhor homenagem ao maior actor do Teatro português do século XX. Inteligente, cómica e conta com a ajuda do público. Público esse que Mário Viegas respeitava e para quem trabalhava.
Em terceiro lugar, o sucesso deve-se à sua estrutura simples. Duas entradas (e saídas) e três actores em palco que, num ritmo estonteante e figurinos diversos, transportam-nos para as diversas personagens criadas por William Shakespeare. Falas dos próprios textos de Shakespeare, improvisos e referências actuais, vão fazendo o "up-grade" na estrutura textual da peça e aproximam o novo público à mesma.
Mas como não há teatro sem actores, cabe talvez a estes a maior responsabilidade do sucesso dos 12 anos desta peça. Nestes 12 anos, as Obras Completas de William Shakespeare em 97 minutos contaram já com 4 elencos diferentes (neste momento tem o elenco original com que estrearam a peça em Portimão, no Algarve) mas um manteve-se estoicamente desde a primeira representação até à actual. Refiro-me a Simão Rubim, rosto mais visível e reconhecível deste enorme sucesso. O homem das mulheres desta peça.
Estou convencido que a ele se devem, pelo menos, 6 anos dos 12 em que a peça se mantém em representação. Actor versátil, dinâmico, inteligente e imprevisível, mostra durante toda a representação a alegria que é o Teatro, mantendo a critica social e política acessa, especialmente quando chega o momento do seu stand-up comedy - trinta minutos bónus de teatro em que toma conta do palco, agiganta-se e leva o público a uma viagem inesquecível ao Portugal "dos pequeninos" fazendo, com a maior inteligência, a crítica mordaz ao mundo político, económico, social, cultural e religioso do nosso país. À boa maneira, aliás, do seu primeiro Mestre - Mário Viegas.
Estes são, para mim, os 4 factores principais que justificam o êxito desta peça. Ou talvez não sejam sequer estes. Não importa. O que interessa é que esta foi mais uma aposta ganha para a Companhia Teatral do Chiado, os seus actuais directores, actores, técnicos de som e luz, cenografos, figurinistas, produtores e, acima de tudo, a prova de que o público português não dorme e ainda consegue, como noutros tempos, separar o "trigo do joio".
A todos os meus mais sinceros parabéns e o meu infinito obrigado.
E agora, palavras de Carlos Fragateiro (ex-director do Teatro da Trindade e do Teatro Nacional D. Maria II), retiradas da página pessoal do Facebook do actor Simão Rubim (a quem foi pedida licença de retirar este excerto):
"Um caso destes é exemplar num panorama teatral português que vive centrado no umbigo dos criadores, sem nenhuma preocupação com os públicos, ou com o sentido de serviço público, ainda que seja um teatro fortemente subsidiado. O vosso sucesso tem que ser gritado por todo o lado, o vosso exemplo tem que ser tratado como um caso de referência, para que as coisas comecem a mudar, e as migalhas da cultura não continuem a ser distribuidas por projectos e obras que só interessam ao ego de quem as faz."
2 comentários:
Muito obrigado pelo lindíssimo texto!!!
Beijo enorme!
Simão
e é tudo verdade, como sempre! (hum, quase sempre).
beijo
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