sábado, julho 04, 2009

E vai dai tive de comprar esta peça...

Papeleira "FADO" de Rafael Bordalo Pinheiro

"Um aspecto que todas as fontes originais sublinham repetidamente, no que respeita a este Fado das dácadas de meados do século, é o da associação indissolúvel entre o canto e a dança. Por mais que se refira o carácter lamentatório - ou mesmo choroso - da melodia, a presença de uma pulsação rítimica bem marcada por batimentos dos calcanhares no chão e por movimentos ondulantes dos quadris é uma característica fundamental que quer as descrições relativas ainda ao Brasil quer os primeiros relatos portugueses nunca deixam de mencionar. Já vimos como Camilos nos fala dos "rijos fados batidos", da "sapatear do fado" e do "rebater trémulo de calcanhares no sobrado"; as quadras supracitadas atribuídas à Severa referem que a Chicória do Sarmento "bate o fado tão bem" e consideram como "supremo gozo [...] bater o fado liró"; o próprio Fado do Vimioso, ao gabar a "voz enternecida" da fadista, acrescenta logo, por entre os elogios que lhe dirige, o facto de esta "dançar o fado com rigor desconhecido", sempre "batendo forte".

Este aspecto, que é um dos elos mais evidentes à tradição afro-brasileira anterior, não pode, pois, ser ignorado, se bem que as descrições relativas ao último terço do século XIX tendam já a evidenciar o progressivo abandono da componente coreográfica em facor de uma execução meramente musical, seja esta apenas instrumental ou envolvendo voz e instrumentos. No entanto, parece haver diferenças consideráveis entre vários tipos de movimentação associados ao Fado. Pinto de Carvalho, escrevendo já na viragem para o século XX, regista, a este respeito, uma observação que além de ser tardia se limita a pouco mais do que um comentário de passagem, e que, apesar de ter sido por diversas vezes citada por outros autores, continua a levantar problemas evidentes de interpretação:

"O fado tem duas espécies de dança: bater o fado e a dança do fado propriamente dita. Bater o fado é uma dança ou meneio particular em que entram duas pessoas ou três: uma que apara (ou duas, às vezes) e que deve estar quieta e o mais firme possível, e a outa que bate, dando regularmente as pancadas com a parte inferior das coxas das pernas do que apara, e meneando-se com requebros obscenos."

E o autor prossegue com a enumeração dos nomes de diversos "batedores de Fado" célebres, entre os quais cita o próprio Conde de Vimioso, e de diversas fadistas que "aparam" com particular garbo essas "batidas", referindo depois separadamente alguns exemplos de "bailarinos de Fado" famosos.

José Ramos Tinhorão parte desta descrição para propor uma identificação deste movimento de "bater o Fado" com aquele em que se pode encontrar igualmente em algumas danças tradicionais afro-brasileiras em que se utiliza a chamada "pernada", um golpe de coxa dado por um dançarino que "bate" na coxa de outro que "apara", procurando desiquilibrá-lo. Se o dançarino que "apara" a pernada não perdeu o equilibrio é ele quem vai em seguida "bater" num outro; se, pelo contrário, se desiquilibrou, o "batedor" pode escolher novo parceiro que tentará também fazer cair. A pernada é dada, em qualquer caso, de surpresa, por entre um jogo de quadris sensual, correspondendo aos "requebros obscenos" de que fala Pinto de Carvalho, e qualquer dos intervenientes pode, em simultâneo, estar a cantar a melodia do fado, improvisando mesmo, por vezes, o respectivo suporte poético.

Esta leitura do investigador brasileiro não só coincide com os dados da descrição específica a que se aplica como concorda ainda com a de Camilo quando o autor do Eusébio Macário nos narra como o seu personagem feminino, a Custódia, ao ouvir cantar o Fado ao irmão, "fazia saracotes de quadris, batendo o pé à frente na atitude marafona de quem apara nos rijos fados batidos".

(...)

Pinto de Carvalho não descreve em detalhe aquilo que designa como "dança do fado, propriamente dita", sendo de admitir que esta corresponda de forma mais directa às coreografias descritas pelos observadores alemães ou por Manuel António de Almeida relativamente ao Brasil nas primeiras décadas do século. De qualquer modo, o que parece implícito no texto, até pelo simples facto da natureza meramente passageira da descrição e do carácter remoto dos exemplos mencionados de "batedores" e "bailariios" de Fado, é que no momento em que este autor está a escrever já ambas as formas de movimento caíram em desuso crescente. Do Fado coreografado de meados do século - tanto "batido" como "dançado" - terão assim ficado gradualmente apenas os apontamentos de movimento ainda incorporados na atitude corporal dos cantores: a postura hirta, semelhante à do parceiro que "apara", o gingar dos ombros ou dos quadris, remniscente dos traços coreográficos anteriores, ou a possibilidade de dar alguns passos, avançando ou recuando, numa tradição que chegará ainda, bem vistas as coisas, a Alfredo Marceneiro.

in: Para uma História do Fado, de Rui Vieira Ney, Edições Jornal Público.

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