domingo, junho 07, 2009

A difícil arte de cantar uma verdade positiva



A busca dele continua a mesma: a da verdade. Que em "Um Copo de Sol" chega a ser milagrosamente positiva.


"Eu não consigo cantar nada que não se passe na minha vida, ou que não se tenha passado. Se não, sinto que estou a mentir", dizia-nos Pedro Moutinho há umas semanas, sentado à mesa de um dos seus poisos de eleição, a Tasca do Chico, no Bairro Alto, numa conversa a propósito de "Um Copo de Sol", o seu terceiro e mais recente disco.

Ele estava a tentar explicar como é que a sua relação com o fado funciona e quase tudo o que dizia andava à volta de uma ideia de "verdade". "A minha disposição não é a de que a vida seja obrigatoriamente rocambolesca", continua, "mas ela é mesmo assim. No meu caso foi sempre tudo muito difícil. Não consigo arranjar justificação para isso".

Quase tudo no discurso de Moutinho vai parar a uma ideia de dificuldade. A vida é difícil, cantar é difícil. No entanto, quando o ouvimos cantar, não parece sê-lo: é um dos fadistas da sua geração com mais leveza na garganta. Mas basta fazer-lhe uma pergunta e a sua timidez revela-se: mexe nas mãos constantemente, as pernas tremem, acende cigarros uns atrás dos outros. A sua natureza é, fundamentalmente, insegura: "Irrita-me muito às vezes ser um pouco inseguro", admite, "mas irrita-me mais a dificuldade que tenho de me ouvir".

Conversar com ele é assistir a um "strip-tease": este rapaz, como o seu irmão mais velho (Camané), não sabe mentir e tem uma obsessão com a verdade. Se lhe fazemos uma pergunta mais pessoal, não a contorna - demora-se, pensa muito, e acaba por responder com toda a honestidade, esforçando-se por estar à altura da pergunta. Nunca parte do princípio de que domina a situação.

Nos últimos tempos, teve a tarefa de ouvir os seus dois discos anteriores "para preparar o alinhamento dos concertos" que vai dar agora. "Tenho imensa dificuldade em ouvi-los", diz, como se se penitenciasse por ter cantado naqueles discos. "Começo a gostar mais do que faço agora. Os antigos estão cheios de erros."

Alegria na voz

O que Moutinho faz agora é, de facto, ligeiramente diferente do que fez até aqui. Nos dois discos iniciais ("Primeiro Fado", de 2003, e "Encontro", de 2006), cantava fados tradicionais e agora inclui canções, ainda que tocadas e cantadas em registo fadista.

As canções vêm de gente tão díspar como Amélia Muge, Tiago Bettencourt ou Rodrigo Leão, mas a grande diferença deste disco reside nas palavras, que às vezes são estranhamente positivas, como é notório na canção de Amélia Muge que dá título ao álbum.

"Fiz o último disco com fados tradicionais e pensei que estava na hora de ir buscar outras referências, ao meu gosto. Ouvi dois discos da Amélia: ela é uma grande intérprete e acima de tudo é de uma criatividade fora do vulgar, não se agarra a clichés", diz, antes de chegar ao que verdadeiramente o deslumbrou: "Ela tem uma força de viver muito grande, que transmite aos outros."

Quando Moutinho decidiu fazer um disco diferente dos anteriores percebeu que não podia esperar sentado, por isso foi à luta. "Fui à procura dela, de a conhecer e de me dar a conhecer." Sendo quem é, a tarefa de se dar a conhecer foi levada um pouco mais longe do que o habitual: "Mostrei-lhe a minha vida, o que foram os últimos 15 anos da minha vida. Ela captou de forma muito criativa coisas que se passaram comigo." Amélia escreveu-lhe "Um copo de sol" (a canção): "Queria muito o optimismo que há naquela canção, porque marca uma fase que ando a passar, que é positiva." Amélia tinha-lhe dito que "devia cantar coisas positivas" porque sentia que Moutinho "tinha alegria na voz".

Uma canção como "Um copo de sol" é, de facto, bastante diferente do que costumamos ouvir num disco de fados. Não só em termos melódicos, como nas harmonias, mas, fundamentalmente, na linguagem (directa, actual).

O que há de curioso nesta história é essa ideia de Moutinho sentir a necessidade de mostrar a sua vida a uma desconhecida para poder trabalhar com ela de forma a atingir algo de "verdadeiro". "Eu abro o meu coração a muito poucas pessoas", avança, "mas as pessoas com que vou trabalhar têm de saber quem sou". Diz isto como se nunca lhe tivesse passado pela cabeça ser possível trabalhar com quem não o conheça profundamente. Depois acrescenta: "Eu mal falo de mim, essa é uma das minhas dificuldades. Só falo de mim com quem tenho confiança, e mesmo assim, falo pouco. Por isso só posso trabalhar com amigos."

Conta a história da sua aproximação a Tiago Bettencourt, que conheceu na Mesa de Frades e com quem desenvolveu "uma relação de amizade". A história é Pedro Moutinho vintage: "Ele falou-me um bocado do que se andava a passar na vida dele, eu disse-lhe que tinha passado por isso há pouco tempo e acabei por gostar da canção que ele me trouxe."

Esta busca obsessiva de identificação e subsequente encontro com a alegria não tem nada a ver com um divórcio com o fado tradicional, diz. Estava apenas "à procura de cantar algo mais directo e actual para chegar às pessoas de forma menos rebuscada". Estava a precisar de "coisas com que me identificasse, que tivessem a ver com o que eu vivi".

16.04.2009
Por: João Bonifácio - revista Ispilon (jornal Público)

Sem comentários: