segunda-feira, setembro 29, 2008

Paul Newman



1925-2008 Paul Newman Era grande, muito grande

28.09.2008, Luís Miguel Oliveira


Actor, realizador, marido, político, piloto de automóveis, team owner, cozinheiro, empresário, filantropo e com certeza ainda mais alguns et cetera. Poucos poderiam recitar com tanta propriedade o célebre poema de Walt Whitman: "I am large, I contain multitudes". Paul Newman era muito, muito grande. Por Luís Miguel Oliveira


"Há alguns que são actores natos, intuitivos. Eu não. Representar, para mim, é tão difícil como dragar um rio. É uma experiência dolorosa. Não tenho, muito simplesmente, nenhum talento intuitivo. O meu trabalho inquieta-me e estou sempre a queixar-me das minhas representações." Paul Newman dizia isto em 1959, e não consta que alguma vez o tenha substancialmente desdito. São palavras que, no seu esboço tipológico (os "intuitivos" e os outros), o definem bem como actor, e explicam alguma coisa da sua qualidade discreta e meticulosa, da sua exuberância controlada: os "intuitivos", para quem tudo parece fácil, gostam de deixar um rasto do trabalho, gostam que se veja que houve trabalho; os outros, aqueles para quem tudo parece difícil, tentam apagar as marcas do trabalho que fizeram, para que o resultado seja limpo, fluido, como se feito por intuição. Trabalho duro, muito duro: "Quando começámos a ensaiar, Paul insistia tanto nos mais pequenos pormenores que eu pensei: 'Nunca mais vamos sair daqui!'", disse Robert Rossen acerca da rodagem de The Hustler (A Vida é um Jogo) (1961), o filme que deu a Newman um dos seus mais célebres papéis, o de Fast Eddie Felson, ás do snooker, depois retomado por Martin Scorsese em A Cor do Dinheiro (1986).
Fast Eddie Felson foi há quase meio século. Newman retirou-se do cinema em Maio do ano passado, pouco antes de anunciar estar doente com um cancro de pulmão, e morreu na sexta-feira, aos 83 anos. A notícia foi avançada ontem por Vincenzo Manes, presidente da fundação italiana Dynamo Camp di Limestre, criada pelo actor, e foi depois confirmada pela porta-voz da família, Marni Tomljanovic. Newman, dez vezes nomeado para os Óscares, a mais recente das quais em 2003, nasceu a 26 de Janeiro de 1925 em Shaker Heights, perto de Cleveland, no Ohio. Esteve internado parte deste ano, para tratamentos de quimioterapia, mas no princípio de Agosto, quando se soube que poderia ter apenas semanas de vida, pediu para ter alta: disse que queria morrer em casa com as cinco filhas e a mulher, a também actriz Joanne Woodward, com quem esteve casado 50 anos.


Dean, Brando e os outros


De certeza que Newman estava a pensar em Marlon Brando quando se colocou de fora do grupo dos "intuitivos". Brando, apenas um ano mais velho, e seu grande amigo, foi sempre um "fantasma" para Newman. "Um dia, hão-de dizer que Brando é que é parecido comigo!", costumava dizer, num ligeiro complexo de inferioridade resolvido com bom humor (e provavelmente numa altura em que Newman não podia prever o "monstro" disforme em que o envelhecido Brando se tornaria). Brando, o "intuitivo", o "animal de cena", o "actor esmagador", emblema da nova geração de leading men do cinema americano do pós-II Guerra, aquele com quem todos eram comparados. Brando, o insaciável, Newman, a encarnação da modéstia; verdade, mas, como escreveu um crítico americano, havia alguma coisa de reconfortante no facto de ser impossível imaginar Paul Newman a encher a boca de algodão (como Brando no Padrinho) ou a alinhar nas tropelias sexuais do tipo das de O Último Tango em Paris. E nos últimos anos, quando Brando já não cabia em filme nenhum que não fosse feito à sua medida, Newman, sempre criterioso na escolha dos papéis, soube envelhecer graciosa e discretamente - e o facto é que quase toda a sua filmografia dos últimos 25-30 anos vale a pena, nalguns casos (como o par de filmes feito com Robert Benton, Vidas Simples, em 1994, e Twilight, em 1998) reflectindo mesmo, com mais angústia ou com mais bonomia, o seu próprio envelhecimento (em Twilight há um rumor persistente que põe em causa a virilidade da sua personagem).

"Stanislavski e blue jeans", assim definia a revista inglesa Sight and Sound, num artigo de 1955, a nova geração de actores que fizera o trajecto entre o teatro de Nova Iorque e o cinema de Hollywood. Newman era um deles, posto ao lado de James Dean (que morreria poucas semanas depois) como candidato a "novo Brando" ou a "novo Montgomery Clift". Esta nova geração, para além de Stanislavski e dos blue jeans, definia-se por um tipo de sensibilidade atormentada que cavava uma diferença para os actores da velha guarda de Hollywood. Uma "nova psicologia", por assim dizer, a psicologia com que os milhares de rapazes americanos que tinham combatido na II Guerra - e tinham voltado dos desertos do Norte de África ou das selvas do Pacífico com a certeza de que o mundo e a humanidade eram um pouco mais complexos do que o que lhes tinham dito - se podiam identificar. Brando e Clift, por exemplo, entraram no cinema em filmes directamente sobre o assunto, a fazerem de veteranos de guerra em The Men e em The Search, respectivamente (ambos filmes de Fred Zinnemann). Newman, que tinha feito os últimos meses da guerra do Pacífico (como operador de rádio a bordo de um avião torpedeiro, depois de lhe ser diagnosticado um leve daltonismo que o impediu de ser piloto), levou sempre um bocado a mal que o seu primeiro papel em cinema tenha sido uma coisa muito mais inócua, uma espécie de peplum chamada The Silver Chalice e realizada por Victor Saville. Tanto assim que, já nos anos 70, numa ocasião em que o filme ia ser exibido na televisão, pagou um anúncio de jornal de uma página inteira a dizer às pessoas que o filme era mau e a pedir-lhes que... não o vissem. Mas os dez anos seguintes, e os filmes feitos nesse período, não lhe deram tanto de que se queixar: Marcado pelo Ódio (1956), de Robert Wise, no papel do pugilista Rocky Graziano que estava destinado a James Dean; Vício de Matar (1958), de Arthur Penn, na pele de um Billy the Kid "moderno", precursor do olhar que o mesmo Penn dedicaria a outros anti-heróis, Bonnie e Clyde, dez anos mais tarde; a prova de que também funcionava em registo cómico em A Morena Ardente, de Leo McCarey, contracenando com Joanne Woodward no mesmo ano em que se casou com ela; os filmes realizados por Martin Ritt (The Long Hot Summer, em 1958, e Hud - O Mais Selvagem entre Mil, em 1963), o citado A Vida é um Jogo e ainda o par de filmes, feitos por Richard Brooks e baseados em peças de Tennessee Williams, Gata em Telhado de Zinco Quente (1958) e Corações na Penumbra (1962), talvez os filmes que melhor jogam com a criação de uma ambiguidade nascida no espaço entre os good looks de Newman e a tortuosidade psicológica das suas personagens. De resto, se Newman cultivava o aspecto e a forma atlética (fumava que se fartava, mas era um desportista) e tinha plena consciência da importância que isso tinha na sua carreira, os filmes deste período trabalham frequentemente uma ameaça à integridade física e mesmo à masculinidade "icónica" - fica com a cara num bolo no filme do pugilista, partem-lhe as mãos em A Vida É um Jogo, anda de muletas em Gata em Telhado de Zinco Quente, é desfigurado à pancada no final de Corações na Penumbra (na peça de original de Williams a personagem era castrada).

Chegado a 1963, com o sucesso de Hud (que lhe valeu a terceira nomeação para um Óscar que só ganharia nos anos 80 com o filme de Martin Scorsese), Newman estava definitivamente imposto como uma das maiores stars de Hollywood. Começa então a transição para uma meia-idade mais calma, e nada isenta de alguma auto-ironia. Disposto a correr alguns riscos, Newman alinha em "experiências" como filmar com Hitchcock (em A Cortina Rasgada, de 1965) ou com o seu amigo Robert Altman (dois filmes nos anos 70), ao mesmo tempo que arranca alguns dos seus filmes mais populares - como O Presidiário (Stuart Rosenberg, 1967) e os filmes em parceria com Robert Redford e o realizador George Roy Hill (Dois Homens e um Destino e A Golpada, em 1969 e 1973).

Estes anos, 60/70, são os anos em que Newman se vai dedicando, cada vez mais, a outros interesses e actividades. A realização, em primeiro lugar. A sua majestosa carreira de actor não nos deve fazer esquecer de que ele foi também um dos mais delicados e secretos cineastas americanos das últimas décadas: cinco filmes entre 1968 e 1987, em que o zénite talvez seja A Influência dos Raios Gama no Comportamento das Margaridas, filme feito para uma actriz que idolatrava, a mulher, Joanne Woodward, e incluindo, em Harry and Son (1981), a "expiação" de um drama familiar (a morte de um dos seus filhos, por overdose) e, em O Jardim Zoológico de Cristal (1987), um regresso a Tennessee Williams para uma espécie de fecho do círculo aberto nos anos 50 dos seus inícios. Na viragem de 60 para 70 Newman andou também bastante envolvido na política (num contexto democrata), com o seu amigo e rival Marlon Brando; experiência frustrante: "Ninguém queria saber de nós para nada". Se representar era "difícil", Newman descobriu por essa altura a única coisa que, sic, "fazia com graça e souplesse": ser piloto de automóveis. Por volta dos 50 anos iniciou uma carreira de piloto semiprofissional que incluiu um segundo lugar nas 24 Horas de Le Mans e um lugar no Guinness como mais velho vencedor (aos 70 anos...) de uma prova oficial (as 12 Horas de Sebring). Tinha a sua própria equipa e, há algumas semanas, quando foi anunciado que Newman tinha os dias contados, também se disse que tinha telefonado ao seu team manager pedindo-lhe que preparasse um carro para poder ir dar "umas últimas voltas". Nos anos 70, os jornalistas pensaram ter descoberto o "lado negro" de Newman na sua paixão pelos automóveis, que só podia ser a expressão de um death wish; Newman riu-se do disparate, era só uma coisa que gostava muito de fazer, "a Joanne vai para a ópera e eu vou para as corridas, é assim que um casamento funciona". O casamento de 50 anos com Joanne Woodward era, claro, outro pormenor distintivo na vida de Newman, verdadeira raridade no meio da volatilidade sentimental de Hollywood. Mas Newman nunca foi o "hollywoodiano" típico: os lucros dos seus molhos para saladas (e da linha de produtos alimentares Newman's Own, espantosamente bem sucedida) vão inteiros para organizações de caridade.

Actor, realizador, marido, político, piloto de automóveis, team owner, cozinheiro, empresário, filantropo e com certeza ainda mais alguns et cetera. Poucos poderiam recitar com tanta propriedade o célebre poema de Walt Whitman: "I am large, I contain multitudes". Paul Newman era muito, muito grande.

In: jornal Público



Fica para mim na memória o filme Gata em Telhado de Zinco Quente, com Elizabeth Taylor...


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