quinta-feira, março 27, 2008

O Meu Colega William Shakespeare - Por António Pedro

Fabricante de luvas é o que o pai queria que ele fosse - e não foi. Letrado apenas ou filósofo em disfarce, poeta, vá lá! - mas não aquele mesmo "good William" que dirigia a companhia dos "Homens do Rei", montava e representava as suas peças em que nem sequer reservava para si os principais papéis, é o que queriam dele os literatos - mas também não foi.

O que ele foi é quem foi: William Shakespeare, nascido em Stratford-upon-Avon, no condado de Warwickshire em Inglaterra, (gentleman, sim senhor, mas depois de celebrizado) no dia 23 de Abril de 1564, ao que se supõe e gostariam os ingleses que fosse, por ser dia de S. Jorge. Esse, o tal que tendo escrito, montado e representado uma quantidade fabulosa de comédias e de tragédias durante cerca duma vintena de anos, deixou um dia a Londres que o glorificara e enriquecera tão calada e misteriosamente como lá chegara, para voltar a casa, aconchegar-se e morrer, outra vez no dia 23 de Abril - e desta feita a data é certa - de 1616, na cidade ribeirinha em que tinha nascido 52 anos antes.

Pois. E o resto é congeminação de congeminadores que nunca viram por dentro como uma peça se põe em pé. Que não sabem como o afluir do espectador à bilheteira depende de como é doseado o efeito dum diálogo ou acertado o comprimento duma cena. Pois! Que quem souber como elas mordem e vir como da exploração duma personagem pitoresca (nascida em outra peça e feita a pedido) surge essa maravilha de construção teatral que são as "nerry Wifes", aparentemente uma comédia de costumes, mas que toca as notas todas do divertimento, da farça à "féerie", não tem dúvida um momento sobre a identidade do autor. A identidade da profissão do autor - homem de dentro do teatro, a quem o génio fez sair do seu palco para a eternidade por obra e graça do Espírito Santo, que parece que é quem intervém nestas coisas, escrevendo, ali, às pressas, para que se pudesse ensaiar outra peça enquanto uma estava em cena, encurtando, aumentando, suprimindo e acrescentando cenas, segundo a qualidade e o número de actores de que dispunha e segundo o público a que destinava a representação.

Olha os literatos a fazerem destas coisas!

A grande trapalhada dos quartos e dos fólios, das discrepâncias textuais nas primeiras e segundas edições das suas obras, vem daí. A eternidade aconteceu-lhe. O que escrevia destinava-se à vida efémera da palavra falada, do conflito vivido por gente em face de gente - ao teatro, isto é - à ocasião.

Essa ocasião tinha condições extraordinárias no tempo da rainha Isabel. Os cais de Londres, ao pé dos quais estava "O Globo", formigavam de gente com dinheiro fácil e desejosa de emoções fortes; o mundo cultural da Renascença abrira-se a um horizonte imenso que os "humanistas" tinham sabido, pelo menos, ensinar que se podia conceber à medida do homem; o palco chamado isabelino - um grande proscénio aberto por três lados, encostado a uma parede perfurada e sobremontado por uma varanda - deixava livre a imaginação do autor sem as restrições aristolélicas da unidade de tempo e de lugar; a indumentária teatral era elementar, convencional e barata: Troilo e Créssida andavam em cena mais ou menos vestidos como o Hamlet e Lady Macbeth.

Ao grande aparato cenográfico da Idade Média sucedera-se a elementaridade sucinta dum palco em que tudo era a imaginar.

"Nesta arena de galos poderão caber
Os vastos campos da França?
Poder-se-ão, entre estas tábuas, juntar os capacetes
Que semeavam de espanto os ares de Agincourt?
Deixai trabalhar as forças da imaginação
Supondo agora que estão fechadas
Entre estas duas paredes
Duas grandes monarquias.
Supri com o pensamento a nossa imperfeição.
Quando falarmos de cavalos
Pensai vê-los marcando na terra mole os cascos orgulhosos.
É com essa imaginação que tendes de ataviar os reis,
Mudando-os de lugar, saltando sobre o tempo
E fazendo caber numa hora de ampulheta
O que leva muitos anos a acontecer."
- Do prólogo de Henrique V.

É claro que o génio é génio e nunca o génio humano subiu a craveira mais alta do que a deste homem meão de estatura, bigodinho fruste, olhos redondos sempre de pálpebra visível e a testa despovoada de cabelo até ao cocuruto da cabeça, boca bem talhada, cabelos como asas emoldurando o oval do rosto até ao baixo das orelhas e, que nos seus retratos, se nos apresenta todo bem posto: gibão de veludo agaloado por várias bandas e o cabeção de renda engomada esticado, grande e todo triques-à-beirinha. Nem eu quero negar isso nem cometer a estultícia (tão à moda) de explicar por motivos sociais alheios e circundantes a misteriosa aparição do génio num indivíduo. Abelhas não somos e, mesmo as abelhas, só fabricam nas mestras a possibilidade monstruosa de porem ovos à bruta. Não é disso que se trata mas da liberdade.

Coitado do génio a que tudo atravanca o caminho e, desde a censura à finança, tudo o impede de manifestar-se! Nascido como nasceu, dotado como nasceu, um século mais cedo ou um século mais tarde, ou noutro lugar que não fosse a Londres daquele tempo (que o digam os espanhóis de génio seus contemporâneos) o significado, a extensão, a profundidade e a liberdade da sua obra, se não a sua beleza literária também genial, não teriam atingido o que atingiram.

Não fosse ele homem do palco ou fosse outro o palco para que concebia o seu teatro e as restrições do lugar lhe atrapalhariam a fluência. Prisões, campos de batalha, salas reais de trono, os pátios das conjuras, antros de feiticeiras, florestas, cemitérios, ruas de cidades a distâncias enormes umas das outras, sucedem-se ao ritmo fácil desta imaginação para que se apela, dum adereço dum telão ou dum letreiro.

Não fosse ele inglês e homem do seu tempo e essa cavalgada monstruosa de crimes, de ambições de conjuras infames e monstruosidades com que ele teceu o estofo dos tronos em que se sentaram as personagens duma história que viu à luz de mil archotes de sangue, e não soaria talvez ao cantante bronze dos sinos maravilhosos a sua liberdade de falar:

"Pompa vã e glória vã do mundo - eu vos odeio!
E sinto o coração de novo aberto. Quão miserável
É o pobre homem que depende do favor dos príncipes!
Existem, entre o sorriso a que aspiramos
No seu semblante ameno e a sua ruína
Mais angústias mortais e medos, do que existem
Ou guerras ou mulheres."
- Henrique VIII, fala do cardeal Wolsey

Ser quem escreveu isto o próprio amante da rainha, como agora anda um preopinante a querer provar? Deixemo-nos de asneiras! [Nota Autor: É de propósito que não cito o autor da "nova teoria". Era só o que faltava dar-lhe publicidade!]

10 tragédias históricas, mais outras 13 tragédias, mais 14 comédias, ao que me lembro e falta-me a pachorra para ir verificar a certeza destes números... Tanto faz, neste caso, mais uma ou menos uma! Uma montanha. E, nessa montanha, a cada passo um espanto, quase a cada verso ou a cada linha de prosa uma beleza. Bem-aventurada fluência!

Notícias dele como autor e actor só se têm ao certo desde 1592. Tudo isso é mais ou menos depois dessa data e antes de 1614. E além das suas peças, ainda representou algumas de Ben Jonson. E, a avaliar pela comezaina que fez com ele e com Michael Drayton, de que lhe resultou a morte, segundo mais tarde contou o vigário de Stratford, e a contar com a caçada furtiva na coutada de Sir Thomas Lucy, a que deve ter-se seguido lauta ceia e foi o motivo concreto da sua quase fuga inesperada de Stratford para Londres - bendita hora! - ainda lhe sobrava tempo para pândegas...

Santo William Shakespeare, meu irmão, herói e mártir, como eu disse num programa de televisão, bicho de teatro pelo génio, pelo vício, por ofício e pelo sangue, perdoa aos literatos que não sabem o que dizem... e ensina-lhes, pelo menos, a escrever bem.

Festeja-se-lhe agora o centenário. Se houver homens na Terra e se não tiverem perdido a graça de falar, festejar-se-á o seu milenário também, que os homens mudam pouco, mesmo em mil anos, no que têm de essencialmente mau e essencialmente bom, nas suas ambições, no seu amor, nos seus ridículos e nas suas fúrias.

Festejá-lo-ão os homens, porque não arrefece o sangue vivo das suas personagens nem as envelhece o tempo. Festejá-lo-ão os poetas, porque foi poeta, os dramaturgos porque foi dramaturgo. Festejá-lo-ão sempre e sobretudo os homens de teatro, fabricantes do efémero, porque foi ao serviço dessas duas horas de riso ou de angústia que sempre tentam erguer no ar como um perfume que se desfaz, que um seu colega de génio compôs uma obra que o transcendeu ou transpôs efémero para a eternidade.

António Pedro, Revista Colóquio, nº 29, Junho de 1964, Fundação Calouste Gulbenkian".
Os meu grande beijinho a todos os actores e actrizes de que eu amo, aos encenadores que admiro e ao Teatro que eu gosto neste Dia Mundial do Teatro.

1 comentário:

Anónimo disse...

Grande texto!

Simão Rubim