quarta-feira, janeiro 16, 2008

Monologo das Avenidas Novas

(foto do autor)

É meu costume deambular pelas Avenidas Novas. – Faço-o muitas vezes quando a vida não me sorri, independentemente do dia da semana (as Avenidas Novas nunca encerram para descanso do pessoal), da hora (mais simpáticas a partir das duas da manhã, mas sempre disponiveis a qualquer hora do dia) ou do tempo (com chuva é pior, embora aumente o cenário). Caminhando por aquelas passadeiras de calçada portuguesa que nos levam a ruas cujo o nome não sei e, entre pensamentos e palavras que me saem pela boca – sim, por vezes caminho falando sozinho (ou melhor, falando de mim para mim, pois uma coisa é ouvir a voz do pensamento e outra é ouvir a nossa voz a expressar um nosso pensamento) apercebo-me de uma coisa: do meu verdadeiro way of life.

Apercebi-me na minha ultima caminhada sem sentido ou destino (paro apenas quando o cansaço me vence ou os olhos me estão pesados) que o sentido da minha vida é estar entre. Sim, estar entre.

Não é no sentido de: - “Entre, se faz favor, aqui está mais protegido” ou “porque não entra e descansa um pouco a cabeça e o corpo, e já agora a alma, os pulmões, o sexo, a barriga e o cú... descanse por inteiro vivo-morto-vivo neste divã suspenso de emoções. Faço-lhe um chá de recordações infantis com um aroma de esperança, adocicado com duas colheres de sonhos por cumprir. Verá que se sentirá melhor”.

O meu entre é estar no meio de duas coisas, sem nunca estar numa ou noutra. Esse é o meu estilo de vida.

ENTRE

Desde sempre que assim foi e só agora cheguei lá.

Passei a vida entre Lisboa e Viseu. Nasci a 10 de Agosto de 1977 mas sem ter tempo suficiente de me sentir Lisboeta. A 15 de Agosto já estava em Viseu. Entre uma cidade e outra, uma estrada de traça tortuosa, longa, com demasiadas subidas para que se chegue enjoado o suficiente ao destino. Veio depois a auto-estrada. Das 8 horas de viagem passou-se a 3 horas. Da excitação que era fazer a viagem (como se de todas as vezes viajássemos até ao reino do Preste João, de que apenas nós tinhamos o conhecimento do mapa) passou-se à chatice de conduzir três horas sem surpresas ou novas emoções até à aldeia que agora é vila, e por isso perdeu o interesse.

Cresci entre irmãos: três mais velhos e dois mais novos. Suficientemente distante de todos eles, por força de compadrios internos e gestão política de poderes. Eu sentia-me a Cuba de Fidel. Forçosamente só, a todo o custo e esforço.

Veio a escola primária e preparatória. Aí estive sempre entre o reprovar e o aprovar. Acabei sempre por nunca reprovar. Não sei como nem à custa de quantos subornos ou choraminguices da minha mãe isso aconteceu.

No entanto, na escola, sentia-me diferente. Não gostava de futebol, nem de porrada, espadas ou dragões mas gostava da companhia dos rapazes (mais tarde acabei de perceber porquê); mas gostava também das raparigas, porque elas iam a museus e gostavam, e eu também gostava; gostava de teatro (obrigado Mãe por esse vício); gostava da companhia dos avós e dos tios; das casas grandes de férias; do nevoeiro entre as árvores, do tanque da rega congelado pelo frio, do cheiro do fumo das lareiras a saír pelas chaminés, ou simplesmente da cascata de água do Poço Azul, da tosse provocada pelos pasteis de Vouzela, do galo estupor que me acordava cedo ou do morcego que se fazia convidado e voava pela casa fora. Das doze badaladas do relógio gigante do meio das escadas da casa da avó em sintonia com as doze badaladas do relógio divino da torre da igreja.

Na adolescência refinei-me. Estive sempre entre aquilo que eu sabia que era e aquilo que eu sei que teria de ser se queria sobreviver saudavelmente numa escola pública. Ou seja, estive sempre entre aquilo que eu verdadeiramente era e um meu outro. Criei em mim uma dupla persona[lidade] que geri como podia e sabia mas que era complicado comandar, pois fazer adormecer um lado para acordar o outro, consoante os locais e as pessoas, não me era fácil e até incómodo.

Mas ainda hoje, aos 30 anos, sinto-me feito de duas matérias diferentes (embora não opostas), sinto essa dupla persona ainda habitando em mim. Quando estou a sós comigo não me sinto igual ao eu que sou quando estou com os outros. Sinto-me diferente ou percepciono-me de maneira diferente.

Ainda não experimentei a sensação de ser apenas um.

Na vida laboral estive e estou entre trabalhos. Nunca me fixo. Não consigo, não quero, não me deixam, não entendo. Entre um trabalho e o seguinte ou o anterior só a insatisfação se mantêm, a sensação de tempo perdido em coisas inuteis, a ideia de que nada de frutifero faço para a Civilização, para a Cultura, para mim. Cada dia de trabalho que passa é mais um cavaco de lenha que lanço para a lareira da bestialidade... da minha bestialidade. Cada vez mais me afundo entre funções que não gosto e a luta infinita de saltar longe e fugir.

Salva-me por vezes a música, a poesia declamada. Com ela respiro, ausento-me, suspenso-me alto, junto de estrelas desconhecidas e pessoas mortas que me fazem falta. Com ela fecho os olhos e a vida é perfeita harmonia, felicidade de dois corpos juntos, convivio entre iguais e caminhadas com destino. Com ela o Amor existe e realiza-se. Sem entraves, sem perguntar como, porquê e onde, sem rejeições ou mentiras. Porque no Amor também estou entre. Entre quem amo e o mundo; entre quem amo e a vida; entre quem amo e os outros; entre quem amo e eu mesmo, principal obstáculo de eu próprio conseguir amar em dois. Apenas uma vez ouvi em Stereo o Amor. Com lado A (eu) e lado B (outro). Ambos perfeitos até aos primeiros riscos, à primeira faixa que se saltou, ao desgaste e consequente destruição. Voltei a ouvir em Mono e re-gravei o meu lado A com novas melodias, não necessariamente com melhor letra.

Entre o muito que ainda teria para contar e o tempo que tenho para o fazer, termino este texto sem causa nem efeito. Quem sabe se não continuo um outro dia, porque tese com antitese dá sintese.

“Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar” – Mário Cesariny

5 comentários:

Anónimo disse...

"Às vezes é no meio do silêncio
Que descubro o amor em teu olhar
É uma pedra
Ou um grito
Que nasce em qualquer lugar

Às vezes é no meio de tanta gente
Que descubro afinal aquilo que sou
Sou um grito
Ou sou uma pedra
De um lugar onde não estou

Às vezes sou também
O tempo que tarda em passar
E aquilo em que ninguém quer acreditar

Às vezes sou também
Um sim alegre
Ou um triste não
E troco a minha vida por um dia de ilusão
E troco a minha vida por um dia de ilusão

Às vezes é no meio do silêncio
Que descubro as palavras por dizer
É uma pedra
Ou um grito
De um amor por acontecer

Às vezes é no meio de tanta gente
Que descubro afinal p'ra onde vou
E esta pedra
E este grito
São a história d'aquilo que sou"

Os versos de Maria Guinot parece-me que vão mto bem com este texto.

Afinal, todos andamos entre. Afinal, porque a vida é isso mesmo.
Tal como a ponte é uma passagem... para a outra margem.

O estar entre é igual a todos nós.
E afinal, é tão bom estar entre...
Porque afinal o caminho é o mais interessante, não é o destino final.

Filipe Macedo disse...

Um espanto; um espanto imenso as tuas palavras, a lucidez desapiedada que delas se desprende, duma claridade e contenção absolutas, sem concessões, sem comiserações! A tua narrativa pessoal, talvez desencantada, lê-se, lê-se… ao ror dos teus passos na caminha deserta e nocturna. Há sempre essa capacidade extraordinária de quem escreve assim se substituir ao lugar dos outros, às vivências dos outros, às emoções dos outros. É o preço, alto talvez (!), a pagar por essa quase-tristeza, essa quase-alegria, por ti contada ter o encanto irresistível das coisas belas e dilaceradas. Desejo-te Amor, no mínimo como a luz clara que pões na noite onde te espelhas, onde quem te lê é por um momento um pouco tu: «entre» a nossa e a tua vida!

Anónimo disse...

Meu querido amigo: há que tempos, santo Deus! Há momentos menos bons na nossa vida, mas é caminhando que se faz o caminho. Esse caminhar tem a ver com o nosso processo de crescimento, a nossa maturidade que nem sempre é fácil de conseguir mas que é essencial para encararmos serenamente o "day after". Conciliar o que de bom vivemos em épocas passadas, as nossas memórias de uma infância feliz e protegida, com o conhecimento que vamos adquirindo sobre nós próprios e aquilo que, de facto queremos, é uma aprendizagem necessária embora, por vezes, dolorosa. Mas, por isso mesmo, enriquecedora.Essas inquietudes partilham-se com aqueles que nos estão mais próximos, nomeadamente com os amigos e as cumplicidades que temos com eles. Tenho saudades. Até breve. Um abraço sincero
Zé Maria

SR disse...

Subscrevo as palavras do meu querido amigo Zé Maria!

beijos e abraços!

SR disse...

Este último texto não é meu mas sim de outra pessoa.

Beijos e abraços.

Simão Rubim