E COMO TODOS OS DIAS MATAMOS DIANA ALEGREMENTE
Fernanda Câncio
jornalista
Nunca me contei entre as fãs de Diana de Gales. Não me tocou a história da rapariga espigadota e tímida que casou com o príncipe muitos anos mais velho e que acabaria por se divorciar, dois herdeiros e ene peripécias pouco edificantes depois. Interessou-me, no entanto, a construção do mito - que precedeu a sua morte -, a forma como contribuiu para erodir de forma irreversível a imagem da monarquia e interessou-me a sua complexa relação com os media.
E, sobretudo, interessou-me a tragédia. Uma tragédia que parecia ter sido anunciada, de tão exacta no simbolismo. Lembro-me da manhã em que acordei para a notícia, de como estranhamente me comoveu, a mim que não sentia nada por Diana, de como me pareceu mentira de tão caricatural. Lembro-me também da longa discussão que se seguiu, ao longo de meses, sobre o papel dos media na morte de uma das suas maiores estrelas, das propostas, no Reino Unido, de um "código de conduta", dos protestos de que nada nunca mais seria igual, que nunca mais se perseguiria ou exploraria de modo tão cruel a imagem ou a vida privada de alguém.
Dez anos depois, aquilo que nos parecia, de Portugal, uma realidade distante e estrangeira - a proliferação do cor-de-rosa, a tabloidização de toda a informação - chegou em todo o seu esplendor. O "acordo de cavalheiros" que foi prometido no pós-Diana, a ideia piedosa da auto-regulação, o primado do bom senso e do respeito pelas pessoas, onde é que isso vai. O caso Maddie - que não por acaso foi comparado, no Reino Unido, em impacto e adesão popular, ao de Diana -, demonstra, caso houvesse dúvidas, a obscenidade da noção prevalecente do que faz sentido publicar. Durante meses, assistimos, nos media britânicos e portugueses, a uma histeria que, incrivelmente, subsiste. Todos os dias saem "notícias" contraditórias e infundamentadas que mais não são que palpites: o sangue é dela, não é dela, é de um homem, "afinal não se sabe". Ela morreu, foi raptada, foi drogada, houve um acidente, os pais estão inocentes, os pais estão metidos na marosca, o Murat é um malandro, o Murat é uma vítima, a PJ é óptima, a PJ não presta para nada. Anunciam-se "buscas" antes de ocorrerem, "prováveis detenções" que não acontecem, fritam-se hoje os mártires/heróis de ontem e vice-versa. Uma alegria. Interessa lá que estejam a decorrer investigações, interessa lá que esteja em causa uma criança de 4 anos, interessa lá que a publicação de tanta falsidade evidencie o quão afastados os media andam da sua suposta missão de informar e esclarecer, interessa lá que haja gente inocente a ser enxovalhada e perseguida, interessa lá que se destruam vidas. Não, nunca saímos do túnel de Alma. Ainda lá estamos, pé no acelerador, atrás de Diana, sempre com a bela desculpa de que se não formos nós, outros serão. Porque elas, as Dianas, "vendem". E toda a gente compra.
Fernanda Câncio
jornalista
Nunca me contei entre as fãs de Diana de Gales. Não me tocou a história da rapariga espigadota e tímida que casou com o príncipe muitos anos mais velho e que acabaria por se divorciar, dois herdeiros e ene peripécias pouco edificantes depois. Interessou-me, no entanto, a construção do mito - que precedeu a sua morte -, a forma como contribuiu para erodir de forma irreversível a imagem da monarquia e interessou-me a sua complexa relação com os media.
E, sobretudo, interessou-me a tragédia. Uma tragédia que parecia ter sido anunciada, de tão exacta no simbolismo. Lembro-me da manhã em que acordei para a notícia, de como estranhamente me comoveu, a mim que não sentia nada por Diana, de como me pareceu mentira de tão caricatural. Lembro-me também da longa discussão que se seguiu, ao longo de meses, sobre o papel dos media na morte de uma das suas maiores estrelas, das propostas, no Reino Unido, de um "código de conduta", dos protestos de que nada nunca mais seria igual, que nunca mais se perseguiria ou exploraria de modo tão cruel a imagem ou a vida privada de alguém.
Dez anos depois, aquilo que nos parecia, de Portugal, uma realidade distante e estrangeira - a proliferação do cor-de-rosa, a tabloidização de toda a informação - chegou em todo o seu esplendor. O "acordo de cavalheiros" que foi prometido no pós-Diana, a ideia piedosa da auto-regulação, o primado do bom senso e do respeito pelas pessoas, onde é que isso vai. O caso Maddie - que não por acaso foi comparado, no Reino Unido, em impacto e adesão popular, ao de Diana -, demonstra, caso houvesse dúvidas, a obscenidade da noção prevalecente do que faz sentido publicar. Durante meses, assistimos, nos media britânicos e portugueses, a uma histeria que, incrivelmente, subsiste. Todos os dias saem "notícias" contraditórias e infundamentadas que mais não são que palpites: o sangue é dela, não é dela, é de um homem, "afinal não se sabe". Ela morreu, foi raptada, foi drogada, houve um acidente, os pais estão inocentes, os pais estão metidos na marosca, o Murat é um malandro, o Murat é uma vítima, a PJ é óptima, a PJ não presta para nada. Anunciam-se "buscas" antes de ocorrerem, "prováveis detenções" que não acontecem, fritam-se hoje os mártires/heróis de ontem e vice-versa. Uma alegria. Interessa lá que estejam a decorrer investigações, interessa lá que esteja em causa uma criança de 4 anos, interessa lá que a publicação de tanta falsidade evidencie o quão afastados os media andam da sua suposta missão de informar e esclarecer, interessa lá que haja gente inocente a ser enxovalhada e perseguida, interessa lá que se destruam vidas. Não, nunca saímos do túnel de Alma. Ainda lá estamos, pé no acelerador, atrás de Diana, sempre com a bela desculpa de que se não formos nós, outros serão. Porque elas, as Dianas, "vendem". E toda a gente compra.
Diário de Notícias - 24/08/07
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