À pergunta "O que é o século XX para os portugueses?" ainda há muito para responder, mesmo que tenham passado pouco mais do que uma meia dúzia de anos sobre o virar do milénio. Para os que não o viveram, ou pelo menos não passaram por alguns momentos marcantes desse século - os mais jovens -, fica difícil fazer um relato que não seja um despreocupado sobrevoar de datas e acontecimentos. Para o outros - os mais velhos, fica a dúvida se o entenderão sem o afrodiasíaco da paixão política a enevoar essa longa cadeia de factos históricos que perduraram como causa e efeito por cem anos. Porque compreender um século em que o regime monárquico é afundado, a República é ensaiada, tem duas guerras mundiais que obrigam a correcções de rotas políticas e a mudanças dos governantes, assiste à guerra colonial, ao fim de um império ultramarino, há um ditador que exerce o poder férreo durante quatro dessas décadas, acontece uma revolução que elimina todos os brandos e habituais costumes de uma população e acaba a integrar-se como par da União Europeia...
Mas é impossível fugir de tal cenário quem vive neste rectângulo e, por isso mesmo, amiúde há quem deseje reconhecer-se em factos que marcaram a nossa história. Talvez mais do que nunca os últimos anos tenham sido proveitosos nesta colheita de obras preocupadas em estudar o passado, situação em que as editoras têm aproveitado a curiosidade dos leitores e publicado volumes que esclarecem esses cem anos. Sejam biografias, sejam investigações, sejam retratos mais aliviados de responsabili- dade científica ou histórica, seja o que for, os livros sobre o século XX surgem e podem explicá-lo.
É o caso de dois volumes do jornalista e escritor Fernando Dacosta que nos últimos meses voltaram à exposição nas livrarias, reedições que compreendem revisão e acrescento de novos documentos para explicar melhor esse referido período: Máscaras de Salazar, que saiu em 10.ª edição com um selo a informar que contém "Documentos inéditos - revelação de factos desconhecidos" e O Viúvo - Memórias do Fim do Império, numa 5.ª edição revista pelo autor. Ambos preocupam-se com essa época e explicam-na como os dois lados da mesma moeda, O Viúvo com a visão de quem sofre a força do poder, as Máscaras, a caracterização de quem o exerce. O primeiro como um romance e que tem de ser lido assim, podendo partir-se dele para outras extrapolações, mas nunca sem largar a corda de um argumento que une os capítulos de uma Lusitânia. O segundo, um relato vincado por Salazar, que tem início no fim anunciado do próprio ditador e que refaz numa amálgama de informações vindas de todos os lados da sociedade o que foi a época e o governo do homem de Santa Comba Dão.
Se n'O Viúvo temos um relato que frequentes vezes nos faz entrar num quase realismo mágico, nas Máscaras é a realidade que dele faz uma espécie de romance. O autor nega-se a fazer uma biografia tradicional, optando antes pela "recriação de uma crónica pessoal" que executa com base numa investigação iniciada há 42 anos. E aquilo que faz em ambos é oferecer essa paisagem do século XX nacional com uma amplitude que faz falta para a compreendermos.
Artigo de João Céu e Silva, Diário de Notícias, 24 de Junho de 2007
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