sexta-feira, julho 14, 2006

Fotografia de Reinaldo Rodrigues



Aldina
por Eduardo Prado Coelho
15 de Abril de 2004

A entrevista que Ana Sousa Dias fez com a cantora de fado Aldina Duarte foi um momento extraordinário de televisão. Habitualmente, as pessoas chegam ao estúdio apoiadas no nome que lhes dá uma imagem social. Isso cria-lhes uma responsabilidade, mas é ao mesmo tempo uma forma de amparo. A personagem pública vai à frente a abrir caminho. A personagem íntima segue escondida, espreita, avança alguns passos tímidos. A dada altura toma a dianteira e desconstrói a personagem pública. Desconstrói, isto é, desmonta as suas próprias defesas, expõe-se na sua vulnerabilidade intrínseca.
Aldina Duarte - de quem falei recentemente a propósito do seu excelente disco "Apenas o Amor" - não segue este percurso, Expõe-se logo de entrada, numa atitude sem pose. Não está à vontade, nem sempre sabe o que pode dizer, mas assume as suas próprias dificuldades de um modo tão natural e espontâneo que isso lhe dá todas as condições para nos aparecer como uma pessoa amiga que veio pela nossa casa dentro. O que é raro. O mérito cabe também ao modo de conversar de Ana Sousa Dias. Mas sem material humano não há modo que valha.
Foi essencial - como a Ana disse no fim - esquecer que se estava com um estúdio à volta. Foi essencial - como a Aldina reconheceu - esquecer que havia a televisão a cercar as pessoas. E nós próprios deixámos de lado o espírito crítico e deixámos que as pessoas rissem, se emocionassem, se indignassem, se olhassem nos olhos, se entendessem naquilo que têm de mais profundo: uma ponte de afectos. O que Aldina nos deu não foi uma personalidade, que precisa de traços e tiques sociais para se desenhar a si própria. O que a Aldina nos deu foi em primeiro lugar a capacidade de ser igual a qualquer de nós, de ter medos, ignorâncias, cautelas, desilusões, pavores inconfessáveis. Mas o que Aldina nos deu de uma maneira admirável - e inesquecível - foi uma singularidade: ela é única na sua história, ela é única no seu trabalho de artista, ela é única nos seus gostos, ela é a única no seu modo de ser. Por exemplo: filha de uma pessoa extremamente modesta que trabalhava com uns patrões, Aldina vê nesses patrões todas as marcas de um olhar sobranceiro de classe. Nesse plano, a sua descrição é sociologicamente precisa. É difícil ir mais longe no modo como a arrogância e a opressão de um olhar que se supõe superior vai afectando a imagem de um corpo de criança e adolescente. Mas no fundo ela retira a carga excessivamente moral desta situação, para ver a relação estrutural entre as pessoas: não, não, talvez eles não fossem tão maus como então se pôde pensar.
Há em Aldina uma posição política que passa primeiro por um corpo antes de se deixar envolver pela teoria. Há em Aldina uma profunda aprendizagem da solidão. E uma vontade feroz de aprender - ter uma biblioteca, isolar-se para ler, fazer cada coisa de uma só vez. E uma amiga antropóloga explicou-lhe que religião tem a ver com religar. Nesse plano, ela sente-se religiosa. Em tudo o que faz concretiza a tarefa de religar os pedaços soltos do mundo para dar um pouco mais de sentido ao mundo em que vive.

Visite o site e o blog de Aldina Duarte em:
http://www.aldinaduarte.com