Entrevista
FERNANDO DACOSTA, AO ENSINO MAGAZINE
"O jornalismo morreu"
Fernando Dacosta afirma que se «desvalorizou» o papel do jornalista e que a ditadura ideológica do passado deu lugar a uma ditadura mercantilista. O escritor defende que o ensino obrigatório nacional deve iniciar-se na primária e terminar na universidade e que precisamos tanto de professores e doutores como de serralheiros e engenheiros. Sobre o país, diz que a crise reside no «estado de alma» e que os portugueses foram feitos para ser deuses e não escravos.
Disse que o livro é a máquina de comunicação mais perfeita e avançada da História. Não tem a massificação contribuído para que a leitura de livros e jornais, perca terreno, nomeadamente para a televisão?
A massificação conduz à indiferenciação, a indiferenciação à desistência, a desistência à apatia. Essa cadeia faz com que o livro seja preterido pelo não pensar do jornalismo róseo e pela televisão narcotizante. Pior: faz com que a literatura reflexiva dê lugar à «light». Assiste-se, por via disso, a um recuo cultural generalizado, pelo que a luta a travar não é entre os livros, os jornais e as televisões, é entre a qualidade e a pimbalhice neles e nelas, por igual, por inteiro.
As estatísticas dizem que quase 10 por cento dos desempregados (43 mil pessoas) tem um curso superior. O «canudo» é, cada vez mais, um passaporte para o desemprego?
Os responsáveis não perceberam ainda que o emprego, tal como o conhecemos, está a desaparecer, que o rendimento das pessoas não poderá vir, no futuro, só do trabalho – cada vez mais inexistente. Todos os políticos que ouvimos (veja-se a campanha presidencial) estão, mentalmente, fora desse futuro. Aproxima-se, e ninguém entre nós está preparado para ela, a maior revolução da humanidade: a da passagem para a era do lazer – passagem que não passa pelas universidades nem pelos seus «canudos» sarcófagos.
UNIVERSIDADES. Temos licenciados a mais em Comunicação Social, História, Gestão e Direito e canalizadores, electricistas e mecânicos a menos? Há excesso de cursos?
Faço minha a visão de Agostinho da Silva quando diz que as universidades devem integrar o ensino obrigatório nacional, ou seja, este começaria na primária e terminaria no superior. Necessitamos tanto de professores e doutores como de serralheiros e engenheiros. Só assim o português ascenderia ao conhecimento e ao progresso.
Segundo um estudo da Faculdade de Economia do Porto, 60 por cento dos universitários copiam nos exames. Somos um país de cábulas?
Se o que compensa é o chico-espertismo, a sub-cultura, o lobismo, o compadrio, a corrupção, a vigarice, a impunidade, o copianço, para quê a seriedade, o trabalho, a exigência, a invenção, a honradez? O masoquismo não é, convenhamos, um grande aliciante.
A partir de Outubro algumas licenciaturas serão de três anos, ao abrigo do figurino do Tratado de Bolonha. Essa uniformização com as instituições europeias trará mais qualidade ao sistema do ensino superior?
É apenas um remendo (para a globalização) numa câmara de ar irremediavelmente trilhada.
SALAZARINHOS. Salazar tem sido, passe o exagero, quase uma obsessão na sua obra. O que é o que o fascina nesse português?
Não direi que sinto fascínio por Salazar, mas sim curiosidade. A minha costela de dramaturgo fez-me um observador fascinado (aí sim) do ser humano em situações limite, excepcionais, no bem e no mal. Salazar foi o político português que mais poder deteve durante mais tempo no nosso País. Marcou-nos (aos que nasceram e se formaram no seu consulado, como eu) para sempre. «Tirou-nos uma alma e deu-nos uma alma», observa Eduardo Lourenço. Ele não caiu do céu, foi segregado por nós, de nós – todos devíamos reflectir nisso. Daí que compreender o seu fenómeno é compreender o nosso carácter.
O Portugal e os portugueses deste início de século XXI ainda demonstram resquícios do período do Estado Novo? Temos Salazares disfarçados nos dias de hoje?
Desde a Inquisição que Portugal está cheio de salazarinhos. Os de hoje dizem-se, no entanto, democráticos... muitos lutaram até contra ele, maneira de ganharem existência.
O nosso país continua «orgulhosamente só» e periférico?
Nunca fomos «orgulhosamente sós» (essa expressão tornou-se descontextualizada) pois sempre nos vertemos pelo mundo inteiro. Periféricos somos e, com a deslocação do eixo da Comunidade Europeia (alargamento) para Leste, tornar-nos-emos ainda mais.
«Somos um povo pobre, mas não miserável, velho, mas não decadente», disse. A crise que este povo com oito séculos de História atravessa é apenas de natureza financeira ou é mais ampla, de estado de alma?
É de estado de alma. Não fomos feitos para esta apagada e vil tristeza em que nos achamos, mas feitos para grandes causas, para ser deuses não escravos. No futuro que houve ontem, e que vai voltar a haver, libertar-nos-emos de novo.
A Língua Portuguesa e o ensino do português têm merecido a atenção devida por parte dos nossos políticos?
Coitados dos políticos, a maior parte deles não sabe falar nem escrever português, só sabe inglês. Os povos lusófonos tornarão, porém, a nossa (a sua) língua o seu (o nosso) petróleo do século XXI.
SEDUÇÃO. Das declarações recentes que tem proferido ressalta uma nota comum: o seu desencanto em relação ao jornalismo. Que principais pecados aponta ao sector da comunicação social? O rigor, o pluralismo e a isenção estão garantidos?
O jornalismo morreu, acho mesmo que foi cremado e as suas cinzas espalhadas no esquecimento. Hoje o que existe é a Comunicação Social (que eu não sei o que é: serão os telefones? os comboios?), um espampanante guarda-chuva que abriga todo o tipo de manipulações, negociatas, hipocrisias, cada vez mais concentrado, traficado. A crescente desvalorização do papel do jornalista (a alma do jornalismo) é fruto disso. Anteriormente vivia-se numa ditadura ideológica, hoje vive-se numa ditadura mercantilista.
Foi jornalista antes e depois do 25 de Abril. A censura sentia-se mais antes, ou agora, de forma encapotada e ao sabor dos interesses económicos e políticos?
Os jornais do passado e os órgãos de comunicação de hoje eram, são excelentes meios de ascender aos poderes vigentes, económicos, políticos, religiosos, industriais, comerciais, empresariais. Os processos para o conseguirem é que mudam, os totalitaristas utilizam a censura e o silêncio, os democratas utilizam o chinfrim e a sedução.
Se não tivesse havido a revolução dos cravos, Portugal seria exactamente o mesmo país que é hoje?
Exactamente não, mas algo de semelhante sim.
«Após as ilusões do 25 de Abril, o socialismo, da Comunidade Europeia, o cavaquismo, a globalização, caímos no aturdimento, uns, no alheamento, outros». Esta frase, por si proferida, significa que Portugal e os portugueses alimentam-se da ilusão e da utopia?
Um povo, um indivíduo sem utopias não sobrevivem.
Nuno Dias da Silva
PERFIL DE FERNANDO DACOSTA
Das raízes africanas
à atração pelo Estado Novo
Romancista, dramaturgo, jornalista, conferencista, Fernando Dacosta nasceu em Luanda a 12 de Dezembro de 1945 de onde foi, ainda criança, para o Alto Douro. Após frequentar o liceu na cidade de Lamego fixa-se em Lisboa, cursa Letras e inicia-se no jornalismo e na literatura. Foi director dos «Cadernos de Reportagem» e co-editor da «Relógio d´Água».
A sua primeira peça de teatro, «Um Jipe em Segunda Mão», sobre a guerra colonial, vale-lhe o Grande Prémio de Teatro RTP, o Prémio da Associação Portuguesa de Críticos e o Prémio Casa da Imprensa.
«A Súplica» (monólogo de uma mulher em ruptura com a realidade pós 25 de Abril), «Sequestraram o Senhor Presidente» (obra localizada no período revolucionário), «A Nave Adormecida» (oratória do Portugal colonialista) e «A Frigideira» (inédito), são outros dos seus trabalhos dramatúrgicos.
«Os Retornados Estão a Mudar Portugal», narrativa da integração dos portugueses regressados de África, obtém o «Prémio Clube Português de Imprensa». «Moçambique, todo o sofrimento do mundo», vence os prémios «Gazeta» e «Fernando Pessoa» de 1991. «O despertar dos Idosos» recebe o prémio «Gazeta» de 1994.
Com «O Viúvo», metáfora sobre a perda do império, conquista o Grande Prémio de Literatura Círculo de Leitores. «Os Infiéis», parábola à volta dos que ousam traír o estabelecido, como os navegadores de quinhentos, e «Nascido no Estado Novo», crónica memoralista, são, respectivamente, os seus últimos romances e narrativa.
Apresentou durante 1991 e 1992 uma rúbrica sobre livros na RTP-1. Integrou os júris dos principais prémios literários portugueses.
Agraciado em 2005 pelo Presidente da República com a Comenda da Ordem do Infante D. Henrique. É colaborador regular da revista «Visão».
Nuno Dias da Silva
Disse que o livro é a máquina de comunicação mais perfeita e avançada da História. Não tem a massificação contribuído para que a leitura de livros e jornais, perca terreno, nomeadamente para a televisão?
A massificação conduz à indiferenciação, a indiferenciação à desistência, a desistência à apatia. Essa cadeia faz com que o livro seja preterido pelo não pensar do jornalismo róseo e pela televisão narcotizante. Pior: faz com que a literatura reflexiva dê lugar à «light». Assiste-se, por via disso, a um recuo cultural generalizado, pelo que a luta a travar não é entre os livros, os jornais e as televisões, é entre a qualidade e a pimbalhice neles e nelas, por igual, por inteiro.
As estatísticas dizem que quase 10 por cento dos desempregados (43 mil pessoas) tem um curso superior. O «canudo» é, cada vez mais, um passaporte para o desemprego?
Os responsáveis não perceberam ainda que o emprego, tal como o conhecemos, está a desaparecer, que o rendimento das pessoas não poderá vir, no futuro, só do trabalho – cada vez mais inexistente. Todos os políticos que ouvimos (veja-se a campanha presidencial) estão, mentalmente, fora desse futuro. Aproxima-se, e ninguém entre nós está preparado para ela, a maior revolução da humanidade: a da passagem para a era do lazer – passagem que não passa pelas universidades nem pelos seus «canudos» sarcófagos.
UNIVERSIDADES. Temos licenciados a mais em Comunicação Social, História, Gestão e Direito e canalizadores, electricistas e mecânicos a menos? Há excesso de cursos?
Faço minha a visão de Agostinho da Silva quando diz que as universidades devem integrar o ensino obrigatório nacional, ou seja, este começaria na primária e terminaria no superior. Necessitamos tanto de professores e doutores como de serralheiros e engenheiros. Só assim o português ascenderia ao conhecimento e ao progresso.
Segundo um estudo da Faculdade de Economia do Porto, 60 por cento dos universitários copiam nos exames. Somos um país de cábulas?
Se o que compensa é o chico-espertismo, a sub-cultura, o lobismo, o compadrio, a corrupção, a vigarice, a impunidade, o copianço, para quê a seriedade, o trabalho, a exigência, a invenção, a honradez? O masoquismo não é, convenhamos, um grande aliciante.
A partir de Outubro algumas licenciaturas serão de três anos, ao abrigo do figurino do Tratado de Bolonha. Essa uniformização com as instituições europeias trará mais qualidade ao sistema do ensino superior?
É apenas um remendo (para a globalização) numa câmara de ar irremediavelmente trilhada.
SALAZARINHOS. Salazar tem sido, passe o exagero, quase uma obsessão na sua obra. O que é o que o fascina nesse português?
Não direi que sinto fascínio por Salazar, mas sim curiosidade. A minha costela de dramaturgo fez-me um observador fascinado (aí sim) do ser humano em situações limite, excepcionais, no bem e no mal. Salazar foi o político português que mais poder deteve durante mais tempo no nosso País. Marcou-nos (aos que nasceram e se formaram no seu consulado, como eu) para sempre. «Tirou-nos uma alma e deu-nos uma alma», observa Eduardo Lourenço. Ele não caiu do céu, foi segregado por nós, de nós – todos devíamos reflectir nisso. Daí que compreender o seu fenómeno é compreender o nosso carácter.
O Portugal e os portugueses deste início de século XXI ainda demonstram resquícios do período do Estado Novo? Temos Salazares disfarçados nos dias de hoje?
Desde a Inquisição que Portugal está cheio de salazarinhos. Os de hoje dizem-se, no entanto, democráticos... muitos lutaram até contra ele, maneira de ganharem existência.
O nosso país continua «orgulhosamente só» e periférico?
Nunca fomos «orgulhosamente sós» (essa expressão tornou-se descontextualizada) pois sempre nos vertemos pelo mundo inteiro. Periféricos somos e, com a deslocação do eixo da Comunidade Europeia (alargamento) para Leste, tornar-nos-emos ainda mais.
«Somos um povo pobre, mas não miserável, velho, mas não decadente», disse. A crise que este povo com oito séculos de História atravessa é apenas de natureza financeira ou é mais ampla, de estado de alma?
É de estado de alma. Não fomos feitos para esta apagada e vil tristeza em que nos achamos, mas feitos para grandes causas, para ser deuses não escravos. No futuro que houve ontem, e que vai voltar a haver, libertar-nos-emos de novo.
A Língua Portuguesa e o ensino do português têm merecido a atenção devida por parte dos nossos políticos?
Coitados dos políticos, a maior parte deles não sabe falar nem escrever português, só sabe inglês. Os povos lusófonos tornarão, porém, a nossa (a sua) língua o seu (o nosso) petróleo do século XXI.
SEDUÇÃO. Das declarações recentes que tem proferido ressalta uma nota comum: o seu desencanto em relação ao jornalismo. Que principais pecados aponta ao sector da comunicação social? O rigor, o pluralismo e a isenção estão garantidos?
O jornalismo morreu, acho mesmo que foi cremado e as suas cinzas espalhadas no esquecimento. Hoje o que existe é a Comunicação Social (que eu não sei o que é: serão os telefones? os comboios?), um espampanante guarda-chuva que abriga todo o tipo de manipulações, negociatas, hipocrisias, cada vez mais concentrado, traficado. A crescente desvalorização do papel do jornalista (a alma do jornalismo) é fruto disso. Anteriormente vivia-se numa ditadura ideológica, hoje vive-se numa ditadura mercantilista.
Foi jornalista antes e depois do 25 de Abril. A censura sentia-se mais antes, ou agora, de forma encapotada e ao sabor dos interesses económicos e políticos?
Os jornais do passado e os órgãos de comunicação de hoje eram, são excelentes meios de ascender aos poderes vigentes, económicos, políticos, religiosos, industriais, comerciais, empresariais. Os processos para o conseguirem é que mudam, os totalitaristas utilizam a censura e o silêncio, os democratas utilizam o chinfrim e a sedução.
Se não tivesse havido a revolução dos cravos, Portugal seria exactamente o mesmo país que é hoje?
Exactamente não, mas algo de semelhante sim.
«Após as ilusões do 25 de Abril, o socialismo, da Comunidade Europeia, o cavaquismo, a globalização, caímos no aturdimento, uns, no alheamento, outros». Esta frase, por si proferida, significa que Portugal e os portugueses alimentam-se da ilusão e da utopia?
Um povo, um indivíduo sem utopias não sobrevivem.
Nuno Dias da Silva
PERFIL DE FERNANDO DACOSTA
Das raízes africanas
à atração pelo Estado Novo
Romancista, dramaturgo, jornalista, conferencista, Fernando Dacosta nasceu em Luanda a 12 de Dezembro de 1945 de onde foi, ainda criança, para o Alto Douro. Após frequentar o liceu na cidade de Lamego fixa-se em Lisboa, cursa Letras e inicia-se no jornalismo e na literatura. Foi director dos «Cadernos de Reportagem» e co-editor da «Relógio d´Água».
A sua primeira peça de teatro, «Um Jipe em Segunda Mão», sobre a guerra colonial, vale-lhe o Grande Prémio de Teatro RTP, o Prémio da Associação Portuguesa de Críticos e o Prémio Casa da Imprensa.
«A Súplica» (monólogo de uma mulher em ruptura com a realidade pós 25 de Abril), «Sequestraram o Senhor Presidente» (obra localizada no período revolucionário), «A Nave Adormecida» (oratória do Portugal colonialista) e «A Frigideira» (inédito), são outros dos seus trabalhos dramatúrgicos.
«Os Retornados Estão a Mudar Portugal», narrativa da integração dos portugueses regressados de África, obtém o «Prémio Clube Português de Imprensa». «Moçambique, todo o sofrimento do mundo», vence os prémios «Gazeta» e «Fernando Pessoa» de 1991. «O despertar dos Idosos» recebe o prémio «Gazeta» de 1994.
Com «O Viúvo», metáfora sobre a perda do império, conquista o Grande Prémio de Literatura Círculo de Leitores. «Os Infiéis», parábola à volta dos que ousam traír o estabelecido, como os navegadores de quinhentos, e «Nascido no Estado Novo», crónica memoralista, são, respectivamente, os seus últimos romances e narrativa.
Apresentou durante 1991 e 1992 uma rúbrica sobre livros na RTP-1. Integrou os júris dos principais prémios literários portugueses.
Agraciado em 2005 pelo Presidente da República com a Comenda da Ordem do Infante D. Henrique. É colaborador regular da revista «Visão».
Nuno Dias da Silva
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