sábado, abril 29, 2006


Dei uma saltada até ao site da Mísia - http://www.misia-online.com/ - e descobri este texto cheio de verdades e de emoção. Refresca o ânimo de quem é português e de quem ama o fado. Boa Mísia!
O "Fadinho" de Paulo Cunha e Silva
Por Mísia - Público 13.01.2004
Acho chocante a maneira como Paulo Cunha e Silva (P.C.S.), director do Instituto das Artes (IA) se refere ao fado na sua recente entrevista a este jornal citando-o como exemplo de um estereótipo redutor da nossa identidade cultural no estrangeiro. Pela responsabilidade do cargo que ocupa, penso que deveria ter evitado a sobranceria da generalização. Não conheço, e dificilmente imagino, um agente cultural de outro país - numa declaração pública de intenções e não falando dos seus gostos pessoais, irrelevantes neste contexto - referindo-se repetidamente de forma desprestigiante a uma das poucas músicas urbanas europeias que, pela sua beleza e não por ser "de Portugal", representaria uma mais-valia para qualquer país, sobretudo aquele onde este senhor exerce as suas funções.
Para nos transmitir a sua ideologia não era necessário escolher uma disciplina artística como vítima. De nada serve continuarmos a invocar a nossa pequenez periférica quando comparados com outros que não escondem a sua diferenciação cultural sem por isso temerem a demissão da contemporaneidade e do cosmopolitismo.
Da mesma maneira que "não nos devemos preocupar pelo facto de na arquitectura do Siza não existir a bandeira portuguesa e dos filmes do Manoel de Oliveira não serem à volta do fado", é decepcionante que pelo facto de no fado usarmos um instrumento de trabalho que tem uma identidade não sermos uma vez mais considerados protagonistas culturais válidos - desta vez expulsos do paradisíaco "Alentejo" de P.C.S. Trabalhar com uma disciplina com identidade cultural não significa necessariamente a procura de uma especificidade étnica, de uma oficialização artística nem um pós-nacionalismo.
Ostracizar paranoicamente durante anos esta expressão artística, como se tem feito desde o 25 de Abril, é um integrismo míope e em grande parte responsável pela ausência de condições para uma autoria e criação de projectos interessantes e interdisciplinares nesta área. É por este tipo de comportamento - e não por causa do fado - que Portugal é um país triste. Porque é preciso uma lei para obrigar os portugueses a ouvirem a sua música de qualidade nas rádios, porque os nossos maiores escritores têm agentes literários estrangeiros, porque Carlos Paredes nunca teve um país à altura da sua genialidade, porque existe um snobismo cultural digno de uma república bananeira, porque demasiadas vozes do novo fado tiveram de emigrar discograficamente, porque ninguém aqui quis a Cesária Évora e agora todos a adoram, porque o Porto 2001 não conseguiu criar públicos, porque este país está bigbrotherizado culturalmente, porque não se vêem bichas nos museus e porque, claro, agora é João César Monteiro até enjoar.
Como me disse uma artista estrangeirada: prefiro pensar "o Portugal" do cinema, dos livros, da música a partir doutro país. Eles lá envergonham-se de nós... E eu acrescentaria que Portugal é um país triste porque os seus artistas têm muitas vezes de ir para longe para o amar e sentir saudades.
Fado, futebol e vinho do Porto. O que me incomoda neste tríptico da culpabilidade é que no primeiro caso, a música, a poesia e os intérpretes são elementos que configuram um dos universos em que Paulo Cunha e Silva trabalha. Isso deveria ter-lhe inspirado mais contenção e respeito. Como se pretende assim ultrapassar "o nível de desconfiança entre criadores e o Estado"? Ou talvez nós - os do fado - não sejamos criadores, não precisemos da linha de apoio à internacionalização? Poderemos sempre recorrer à linha de apoio à vítima, não é verdade?... Deixa-se "ad nauseam" o "triste fadinho" de lado pois ele exporta-se sozinho, como até agora acontece... correndo o risco de o tornar cada vez mais triste e mais fadinho. Como é possível que alguém que dirige um Instituto das Artes em 2004 não tenha uma opinião mais esclarecida e menos estereotipada?
Eu sou bloquista, do Porto e cosmopolita. Gosto das fotografias da Sophie Calle, das esculturas da Louise Bourgeois, gosto de tremoços e também de saké. Conheço os filmes do Tarkovsky, leio Kawabata e Paulo José Miranda. Adoro o Kiasma Museum em Helsínquia! Gostaria de cantar o fado de Annlee (a personagem manga do Pierre Huyghe e do Parreno) e não gosto nada de sardinhas! Quando me dá, canto fado vadio na Tasca do Careca, outras vezes no Town Hall em Nova Iorque. Fado tocado pela Maria João Pires, fado que o Bill T. Jones dança, Patrice Leconte filma e Isabelle Huppert recita. Sem nenhuma linha de apoio a não ser a linha dos meus cosméticos. Sou um bom exemplo dos muitos fados que o fado contém e de quão longe se pode estar de uma "arte oficial portuguesa".
O Governo francês condecora fadistas... e um representante oficial da cultura do meu país, onde vivo e pago impostos, fala assim? De uma música que traz aos teatros no estrangeiro turmas de alunos que estudam a nossa língua e literatura?
Camané e Kátia Guerreiro cantam no Théatre de la Ville em Paris, Mariza ganha o Prémio BBC, nos auditórios das universidades nos Estados Unidos, no festival de Avignon, em Moscovo, ouvem-se fados com palavras de Saramago, Agustina Bessa-Luís, Vasco Graça Moura. Estamos assim a afirmar nossa presença cultural no estrangeiro de uma forma local/universal e... contemporânea. E não é por ser portuguesa que esta música faz parte da programação desses espaços mas sim pela sua beleza e força devastadora. Se P.C.S. é insensível a esta realidade, pelo menos não a desfigure.
Apesar de não ser cosmopolita (que cidade portuguesa o é?), o fado pode dialogar e inspirar outras disciplinas, outros criadores de outras culturas. Por que continuam a pensá-lo como "uma casa portuguesa" a contrapor a "uma casa do mundo"? Até um turista do Bairro Alto sabe que já não é assim. Há muitos fados no fado. Bastaria a P.C.S. ter estado atento à programação da Culturgest ou do CCB.
Sakamoto, Gilbert & George, Adriana Calcanhotto, Lipovetsky e uma lista interminável interessam-se por esta música, longe de uma atitude paternalista ou populista. O fado é a assimilação de um encontro de culturas, um exemplo de globalização "avant la lettre". Auto-regenera-se continuamente. Tem um universo tão complexo e cheio de extremos como qualquer outra arte performativa. Pode também ser contemporâneo e um interessante ponto de partida para habitar o mundo - em Alfama e/ou em Berlim.

1 comentário:

Anónimo disse...

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