Memórias Dum Teatro Desaparecido
A Estreia Buliçosa
da "CASA DA BONECA"
Lucília tinha entrado pouco antes (4 de Maio de 1895) no "Frei Luís de Sousa", contracenando com o avô, o velho actor Simões. O seu êxito, então, como os seguintes, tinha a medida de um verdadeiro talento incipiente e da corte que rendiam a sua mãe, a grande Lucinda. Menina prodigio que mais tarde, emancipando-se e dignificando-se, a faria distanta à sombra dos Rosas e Brasões, a jovem Lucília tinha só dezasseis anos quando fez deliciosamente "Casa da Boneca". Ibsen teria nela uma das suas mais notáveis intérpretes. Mas a estreia em Coimbra, estava escrito, não seria feliz.
Lucinda, a meio do primeiro acto, dava judiciosamente conselhos a Lucília quando uma voz, saída das primeiras filas, disse com calma naturalidade:
- Muito bem, D. Lucinda!
A plateia galhofou, no palco houve surpresa, indecisão e silêncio; depois, tudo se recompôs e a peça prosseguiu. Mas, com a entrada de Cristiano em cena, outra vez se ouviu a mesma voz com a mesma calma naturalidade:
- Lá vem este escangalhar tudo!
Cristiano suspendeu-se, houve um segundo de expectativa e ouviu-se a sua voz, dirigindo-se ao ponto:
- Mande descer o pano!
E o pano desceu, no meio de tumultuosos protestos... incluindo os da autoridade, que apareceu no palco e convenceu Cristiano a mandar subir o pano. De facto, o pano subiu e Cristiano apareceu, pálido e emocionado, no meio da gritante academia. E Cristiano, que se formara em Direito naquela mesma Coimbra, que fora delegado do Ministério Público e, pelo teatro, não quisera ser juiz, disse nervosamente:
- Também tive a honra de pertencer a esta academia, mas no tempo em que se respeitavam os artistas de teatro, muito especialmente se tinham a categoria de D. Lucinda Simões, que dá a Coimbra a primeira de uma peça de Ibsen. Não admito que interronpam o espectáculo. Por isso, quem não compreender Ibsen pode levantar o dinheiro do seu bilhete!
Aos gritos, mais de metade da plateia retirou-se e não houve espectáculo.
No dia seguinte, porém, tudo se esclareceu: o "comentador" da véspera "tocara-se" num banquete a que acabara de assistir e ali estava agora a pedir as suas desculpa; uma comissão de estudantes pedia e dava explicações; e, com tamanho reclame imprevisto, à noite a casa teve enchente memorável. O êxito de Lucília também ficou memorável.
Nunca em Portugal se representara com tamanha ingenuidade e singeleza!"
- Diário de Notícias, 14 de Agosto de 1962
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