terça-feira, agosto 02, 2005

Maria Rattazzi - Portugal de Relance - Carta Décima Quinta - Continuação

"Além dos inconvenientes que resultam deste estado de coisas para a higiene particular, outros existem atentatórios da salubridade pública. As nascentes exaustas não dão aos chafarizes água bastante para refrescar a atmosfera e expurgá-la dos miasmas perigosos; as sarjetas, não recebendo gota de água, deixam acumular nos canos toda a imundície da cidade, o que torna alguns bairros inabitáveis. Outra ocorrência gravíssima: sempre que no estio se manifesta um incêndio, os bombeiros (corporação admiravelmente organizada, diga-se a verdade) não encontram um metro cúbico de água nos canos da companhia para extinguir o fogo; sendo necessário abater e demolir para cortar comunicações.
De todas estas anomalias resultam consequências deploráveis e que se poderiam evitar empregando medidas energéticas. Mas os que deviam falar calam-se, e o povo português deixa-se esfolar sem protesto. A companhia não se apressa na execução dos trabalhos e a população, as ruas, os canos e as bombas continuam a morrer à mingua de água. Parece, à primeira vista, que o governo e a câmara municipal deviam patrocinar a causa dos contribuintes. Mas nada disto sucede. Corre em Lisboa, a tal respeito, um boato que não referirei para não me tomarem por maldizente...
Se o país passa, às vezes, cinco, seis e mesmo sete meses sem absorver um pingo de chuva, em compensação chove torrencialmente duranto o Inverno, segundo me afirmaram. Não é a chuva como a conhecemos em França; mas sim jorros de água que se despenham em torrentes caudalosas, inundando a cidade e prolongando-se por espaço de muitos dias consecutivos. Não sabem então os habitantes onde hão-de ir abrigar-se, em consequência da humidade das casas onde nem sequer existe um fogão para combater as intempéries da temperatura; podendo considerar-se felizes quando o Inverno lhes deixa apenas uma grande constipação ou algumas dores reumáticas. A maior parte das casas em Lisboa não têm goteiras; a água que cai nos telhados escorre daí para a rua e sabe Deus de que maneira! Às vezes assemelham-se a catadupas enormes jorrando nos passeios, não bastando o guarda-chuva para nos abrigar. Quem tiver de sair em semelhante ocasião deverá resignar-se a caminhar pelo meio da rua.
Acabemos de vez com esta resenha, um pouco humorística talvez, mas que tem um grande fundo de verdade.
Montesquieu admirou os canos de Roma, construídos no tempo de Tarquínio, e foi a seu propósito que escreveu a magnífica antítese: "Já se começava a edificar a cidade eterna." Lisboa está muito longe daqueles tempos primitivos. Os canos da capital portuguesa só se podem comparar aos de Tarquínio... em não serem modernos. A sua construção pertence efectivamente a uma época bastante remota. Poder-se-ia julgar que foram construídos por um povo bárbaro, tão deficiente é a sua execução e o plano a que estão subordinados. Toda a cidade baixa, edificada sobre o Tejo, acha-se ao nível do rio; os alicerces das casas chegam a estar abaixo desse nível. Os canos da cidade alta ramificam-se com os da cidade baixa e estes últimos desaguam no Tejo, se acaso o Tejo se digna recebê-los. De facto, quando a maré sobre não só tapa a abertura dos canos como os enche, impelindo muito mais para dentro as imundíces e putrefacções; quando desce a maré o plano dos canos na cidade baixa não chega a ser tão inclinado como é necessário para arrastar o que já têm e o que lhes traz a cidade alta; o que podem conduzir deposita-se nas margens do rio, onde, facilmente se imagina, exalam emanações desagradabilíssimas." - Continua.

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