domingo, julho 17, 2005

Mau Génio - André Brun - 30 Junho 1913


MAU GÉNIO

Está demonstrado que um portuguez mata sete pessoas por dia, em média. Logo de manhã acorda e pergunta se já viéram as botas do sapateiro, onde estão a receber fabrico de meias solas e atacadores novos. Ao saber que o homem faltou como um cão ao prometido, primeiro homicídio:
- Mariola! Bandido! Pulha! Safardana! Com que botas hei-de sair agora? Só dando um tiro naquêle tipo...
A família lá o aquiéta com um chavena de café com leite, calmante poderoso para o alfacinha, e dá-lhe os jornais para lêr. Logo na terceira coluna vem a transcrição duma gasêta estrangeira, em que o regimen é caluniado e se reclama a intervenção das potências. O furôr não conhece limites:
- Ah cães! Infames! O que êles precisavam era a lingua cortada, a mão decepada, o bofe arrancado pelos tornesêlos e a vida fóra...
Para socegar os nervos, lê o anuncio do Zé Clemente, levanta-se, lava a cara e vae almoçar. Comparece um bacalhausinho, cercado duma numerosa comissão de grêlos. Fala-se na carestia dos géneros alimentícios, na exploração dos revendedôres, e erguida a faca escorrendo aseite, o nosso amigo berra:
- O que êles precisavam sei eu! Não querem crer que isto não vae lá doutra maneira. Se eu governasse meia hora, enforcava meia dûsia e veriam como isso ficava de emenda...
Enrolado o guardanapo, sae o homem á rua. Está uma carroça parada e um brutamontes á pancada ao pobre cavalinho? Claro está que a unica maneira de remedear o caso era dar uma chicotada no selvagem e matá-lo para o ensinar a viver. No placard dum jornal lê-se que um chauffer atropelou um cidadão pacato e ordeiro? Forma de faser justiça: fusilar metade dos chauffers e pegar fôgo aos automoveis que andem com excesso de velocidade. Se acrescentarmos a isto que os sindicalistas todos deviam ser fritos em aseite, que os namorados que matam as namoradas se lhes deviam arrancar as unhas dos pés, etc., etc., podemos faser uma pequena ideia do pitorêsco que teria a existencia, se fosse regulada pelas impulsões de que os portuguêses são tão pródigos. Nas questões particulares nem se fala. Todos nós temos pelo menos cincoenta vitimas em vista, pessoas que nos têm sido desagradeveis e a quem aplicariamos os mais inquisitoriais tormentos.
Afinal de contas somos todos incapases de faser mal a uma mosca e estamos sempre prontos a lançar nos ao mar para salvar uma sardinha que corra risco de se afogar.
André Brun, 30-Junho-913

2 comentários:

Maria disse...

Hoje em dia continuamos com o mesmo mau feitio e a apontar, mais ou menos, nas mesmas direcções.
E se pensarmos que já passaram 92 anos sobre este texto, não sei que pensar :-(
Dulce

José Carlos Araújo disse...

Melhor ainda que o excerto do DN de 1865. Redobro os parabéns pelo blog.

P.S.: O Brun era realmente genial em certas coisas.