terça-feira, abril 05, 2005

O que se disse na Assembleia da República aquando do falecimento de Mário Viegas

Srs. Deputados, ontem foi um dia em que Portugal sofreu duas rudes perdas, pois perdemos ainda o grande actor, declamador e encenador Mário Viegas.
A Mesa tomou também a iniciativa de submeter à apreciação e votação dos Srs. Deputados o voto n.º 22/VII – De pesar pelo falecimento do actor Mário Viegas.
O voto é do seguinte teor.
Morreu Mário Viegas. Encenador, actor e declamador de raro talento, deixa vago um lugar de difícil preenchimento no teatro declamado.
Foi, além disso, um raro exemplo de humor inteligente. Interiorizou a poesia como poucos. Fez da sua própria vida um poema de combate por ideias. No teatro, no cinema, na declamação e nos projectos que animou, foi sempre um grande artista, um homem de cultura, uma voz de intervenção incomodada e crítica.
A Assembleia da República deplora a perda de um talentoso português e endereça à família de Mário Viegas a sincera expressão do seu pesar.
Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado José Niza.
O Sr. José Niza (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Mário Viegas, como acabou de ser dito, foi um grande actor, um grande encenador, um grande divulgador de poesia, um grande diseur, aliás, o maior divulgador de poesia que conheci em Portugal desde sempre milhares de horas a dizer poesia e os melhores poetas. Mas Mário Viegas foi também um homem digno e um grande amigo pessoal.
Mário Viegas, desde os 16 anos, e morreu com 47, esteve sempre debaixo dos holofotes e das luzes dos palcos. Estreou-se em Santarém, no Teatro Rosa Damasceno, com 16 anos, a dizer poesia de Alexandre O'Neill e de outros poetas e, a partir daí, nunca mais parou. Estreou-se profissionalmente no Teatro Experimental de Cascais, em 1970, e terminou na sua própria companhia, a Companhia do Chiado, que fundou há alguns anos.
Foi, pois, um homem que atravessou todo o firmamento dos palcos, dos textos e das grandes obras, de uma versatilidade extraordinária, grande humorista, grande actor satírico, mas também actor das grandes obras e dos grandes textos do teatro.
Virando a página do teatro, mudemos para a televisão. Não foi por acaso que, ontem à noite, todo o País conheceu e se entristeceu com a morte de Mário Viegas. Na televisão, deixou uma obra só comparável à de João Villaret. Recordo que Mário Viegas, antes do 25 de Abril, fez alguns programas recreativos, mas onde sempre dizia poesia e textos satíricos. Logo a seguir ao 25 de Abril, fez um programa histórico, chamado "Peço a palavra", dirigido a crianças, que era um Parlamento um pouco como aquele em que estamos, faccionado por ele para ensinar às crianças portuguesas os valores da democracia. Posteriormente, e tive a honra de o convidar para fazer esse programa, quando estive na televisão, colaborou numa célebre série chamada "Palavras Ditas", depois complementada com "Palavras Vivas". Recordo que, nessa altura, ainda havia televisão em Portugal, pois tivemos a coragem de passar o Mário Viegas aos sábados à noite, a seguir ao Telejornal, a dizer poesia, e a audiência não baixou. Espantosamente, e esse era o receio dos responsáveis, a audiência não baixou pelo facto de Mário Viegas aos sábados à noite, dizer poesia como ele a dizia.
Mas voltemos a página para a rádio. Foi aqui que Mário Viegas, durante longuíssimos anos, disse praticamente toda a poesia portuguesa de mérito, aquela que havia a dizer, e todos se recordam disso.
Mas há mais páginas, como a página do cinema. Recordo o sucesso que foi, por exemplo, um filme que fez com o Fonseca e Costa, Kilas, o mau da fita. Mas ainda ontem à noite, no trailer de apresentação do filme Aferroa Pereira, talvez alguém tenha visto Mário Viegas a contracenar com o célebre italiano Marcello Mastroianni, que era um actor do seu plano, só que Mário Viegas, sendo português, não conseguiu chegar a Hollywood.
Mas não se acaba aqui a intervenção cultural de Mário Viegas. E aqui iniciámos um caminho juntos, que é o dos discos, o dos 13 discos que Mário Viegas deixou gravados.
Só um desses discos se encontra editado em CD, mas, porque, hoje, o que não é CD não é ouvido, vou pedir à editora que adite em CD toda a obra de Mário Viegas. São 13 discos, produzi muitos deles, fiz música para muitos deles, porque ele aceitou que a música também fazia paute da poesia e as duas casavam-se para conseguir, digamos, um melhor resultado e melhoras climas. E lembro, por exemplo, outro meu amigo já falecido, Vinícius de Morais, a quem ofereci o disco de Mário Viegas, dizendo um poema dele sobre o Trópico de Câncer, que ficou completamente terrificado com o modo como Mário Viegas o disse, porque é um poema sobre o cancro.
Mas talvez o ponto máximo de Mário Viegas a dizer poesia tenha sido a Cena do ódio, totalmente actual, de José de Almada Negreiros.
Findas estas páginas, gostaria de falar um pouco do homem, do amigo que conheci.
Mário Viegas nasceu em Santarém e morava a 100 metros da minha casa. Quando tinha 17 anos e fui para a faculdade, tinha ele 7 e entrou para a escola. Nessas idades, 10 anos de diferença é muito tempo. Mário Viegas ia a minha casa, de calções, para a minha mãe lhe dar aulas de catequese – não serviram praticamente para nada, embora a minha mãe se tenha esforçado, mas o Mário Viegas também aprendeu alguns valores nesses momentos.
Desde essa data até hoje, fui amigo de Mário Viegas. Recordo, antes do 25 de Abril, a acção que ele teve, percorrendo o Pais, dizendo poesia, num grupo constituído por José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire, Carlos Paredes e outros. Percorreram todo o Pais, dizendo poesia, antes do 25 de Abril. Por isso, há pouco, à salda do funeral do Mosteiro dos Jerónimos, disse o seguinte ao pai de Mário Viegas: o funeral do Mário Viegas é no dia 2 de Abril, data em que se comemoram os 20 anos da Constituição portuguesa, e o Mário Viegas, não sendo constituinte, acabou por contribuir para que essa Constituição fosse feita aqui, nesta Sala, e trouxesse a democracia a Portugal. Penso que se trata de uma data que ele teria escolhido, mas não o pôde fazer.
Aplausos do PS.
1712 I SÉRIE – NÚMERO 54
O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Ruben de Carvalho.
O Sr. Ruben Carvalho (PCP): - Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados: A perda de um grande artista é sempre uma perda para um país e para um povo, o que amplamente justifica que esta Assembleia exprima o seu pesar pelo desaparecimento de Mário Viegas.
A essa condição de grande homem de teatro, Mário Viegas juntava muitas outras que igualmente justificam este nosso voto de pesar, nomeadamente o seu empenhamento cívico, o seu apego aos valores da liberdade, da solidariedade e da democracia.
Finalmente, Sr. Presidente e Srs. Deputado, Mário Viegas era, como artista e como cidadão, um homem livre, um homem convicto e lúcido, um homem firmemente disposto a viver a vida, simultaneamente céptico e entusiasta, contundentemente irónico e sarcástico e estimulantemente crítico e realizador.
A estas horas, possivelmente, estará algures, com a sua devastadora ironia e o seu imenso talento, perante uma audiência de anjos, a desempenhar uma sátira sobre esta sessão no Parlamento em que o recordamos e o seu público continuará a dizer o que sempre dissemos e continuaremos a dizer. Que grande artista!
Aplausos do PCP.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vieira de Castro.
O Sr. Vieira de Castro (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: O Grupo Parlamentar do PSD associa-se a esta homenagem que o Parlamento presta à memória de Mário Viegas, um homem de quem não é certamente fácil falar porque isso acabaria por traduzir-se em repetir elogios atrás de elogios, tal era o seu talento.
Também não é fácil falar de Mário Viegas porque, na minha opinião, ele era um homem diferente dos homens comuns. Todos lhe reconhecemos a sua extraordinária capacidade artística no âmbito do teatro, do cinema e da poesia e, para Portugal, sempre que ocorre o desaparecimento de um artista, seja qual for a área em que se situe, representa sempre uma grande perda, uma perda maior porque, infelizmente, somos bem carecidos de homens e mulheres das artes. O desaparecimento de Mário Viegas constitui por isso uma grande perda, mas diria que é uma perda acrescida exactamente porque, infelizmente para todos nós, poucos portugueses têm o talento que Mário Viegas tinha. Paz à sua alma!
Aplausos do PSD.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Nuno Abecasis.
O Sr. Nuno Abecasis (CDS-PP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: É um triste privilégio, numa mesma tarde, ter ocasião de prestar homenagem a dois amigos, Alfredo Nobre da Costa e Mário Viegas.
Mário Viegas era muito mais novo do que eu e conheci-o através de um amigo comum, também ele um grande humorista e um grande português, Samuel Torres de Carvalho, o saudoso Sam, de quem Mário Viegas interpretou as historiazinhas de televisão, tão carregadas de humor e sentido crítico.
Tive também o privilégio de, com o Sam e com o Mário Viegas, assistir à planificação dessas pequenas obras primas da nossa televisão e ver o entusiasmo que Mário Viegas punha nas coisas que fazia e com que imaginou outras que não chegou a fazer, como é o caso de passar a televisão a história do Guarda Ricardo, que ele – e a Maria do Céu Guerra, que iria fazer de Heloísa – viveu com grande entusiasmo, alegria, espírito crítico e humor efervescente.
Mário Viegas, pelo seu génio, tinha o privilégio de poder dizer coisas que outros não podiam dizer e todos lhe desculpavam a irreverência. Curiosamente, hoje de manhã, no Mosteiro dos Jerónimos, pensava o que teria a ver aquilo a que estava a assistir com o que tinha sido o homem Mário Viegas. De repente, lembrei-me que o que é importante para um homem é atingir, tanto quanto possível, a perfeição, ainda que seja no espírito crítico e no humor, porque também isso é um dom de Deus. E queria dizer ao meu amigo José Niza que a mãe dele não perdeu tempo.
O Sr. Presidente: - Vamos votar o voto n.º 22/VII - De pesar pelo falecimento do actor Mário Viegas.
Submetido à votação, foi aprovado por unanimidade, registando-se a ausência de Os Verdes.
Em sua memória, vamos guardar um minuto de silêncio.
A Câmara guardou, de pé, um minuto de silêncio.

Sem comentários: