A derrota do silêncio
Lisboa, Teatro São Luiz, noite de quinta-feira. Um telemóvel toca logo no início do recital do pianista português Artur Pizarro e é sonoramente atendido. O músico pára a execução da peça e retoma-a logo a seguir. Mais adiante, torna a ouvir-se outro toque, mas desta vez Pizarro não pára. A seguir ao intervalo, soa outro telemóvel, longamente, porque o proprietário nem se digna desligá-lo. Artur Pizarro deixa de tocar e diz à criatura "Atenda, que eu paro. Mas saia". E pega nas partituras, levanta-se e vai-se embora. Há burburinho na sala e é anunciado que o pianista não regressará. O dono do telemóvel que estragou a noite a Pizarro e ao público do São Luiz dirige-se à bilheteira para exigir o dinheiro de volta, porque o recital foi interrompido.
O telemóvel já substituiu a tosse cava e o barulhinho do papel de rebuçado como grande elemento perturbador nas salas de espectáculos. Mas o fenómeno não se deve apenas a um punhado de esquecidos crónicos que nunca desligam os telemóveis no teatro, no cinema, na ópera ou no recital, nem à falta de educação e consideração de meia dúzia de grosseiros, os mesmos que antes de haver telemóveis faziam barulho e falavam alto nos espectáculos. Ele é a manifestação de um mal-estar social muito maior.
O adolescente parvinho, o novo-rico cultural, o grunho das novas tecnologias, a cinquentona impertinente que se vão sentar numa plateia ou num auditório sem silenciar o telemóvel e o atendem ostensivamente enquanto os actores interpretam, os músicos tocam, o filme corre ou os cantores vocalizam, já não sabem ser espectadores. Perderam a noção do que é assistir a um espectáculo partilhado colectivamente. A sociedade em que nasceram e foram "educados" é uma sociedade que tem horror ao silêncio e só está bem no meio do barulho, incomode a quem incomodar. A cultura em que vivem é a da comunicação redundante, da palavra vazia, do falar para dizer nada mas até se ficar sem voz, alimentada pelas empresas de telecomunicações e pelas campanhas de publicidade. No nosso mundo há educação a menos e som a mais. Admiram-se por isso que toquem cada vez mais telemóveis e sejam atendidos nas salas de espectáculos? Habituem-se!
Texto de Eurico de Barros, “A derrota do silêncio”, in Diário de Noticias OnLine, 12-03-2005
Para saber mais deste episódio visite www.pancadademoliere.blogspot.com
1 comentário:
Que sirva de lição
Fiquei abismado com o que li. Será possível?
Tenho ido a vários espectáculos musicais na Gulbenkian e no São Carlos e nunca vi nada assim. Aliás pede-se, antes do espectáculo, que desliguem os telemóveis.
Penso que em parte tal deve-se ao albergue chinês em que o São Luis se transformou: musica pimba + teatro rasca + espectáculos de baixíssima qualidade apresentados aos altos berros no salão do 3º andar.
Lá diz o povão que quem não quer ser lobo não lhe veste a pele.
Bastava uma selecção criteriosa daquilo que lá se exibe, para afastar os indesejáveis de uma sala de espectáculos que teve uma história que só dignificou a cidade.
Infelizmente a democratização tem destas coisas: em vez de estarem refastelados em casa a verem o Herman e outras merdas, resolvem ir ao São Luiz. E depois é o que se vê! Façam cursos de curta duração com a Bobone de como estar numa sala de espectáculos e nada disto acontecia. Em vez de mandarem a senhora, coitada, para as prisões, ensinar os reclusos a comerem!
Abraços
zemaria
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