O actor Carlos Santos, o Rei D. Carlos e o Conde de Ficalho
“26 de Março de 1897
Nesta data realizei a minha récita de que fazia
parte o seguinte programa: A Gravata Branca, comédia em I acto, em verso, de
Gondinet, tradução de Pinheiro Chagas; O Dinheiro, cançoneta original de
Geraldes de Queirós, música de Filipe Duarte, desempenhada pelo Telmo; Os
Namorados, comédia em 3 actos, de Goldoni, tradução de Pinheiro Chagas.
Uns dias antes da exibição deste espectáculo,
El-Rei D. Carlos assistia à representação de qualquer comédia hilariante do
reportório do nosso Teatro que Ele frequentava assiduamente, talvez para
repouso do seu espírito atormentado pelas misérias politiqueiras que tantas
vezes tinha de suportar. Lembrei-me então de que me cumpria o dever de
convidá-Lo a assistir à minha récita, a realizar daí a dias, deliberação de que
fiz confidente o Telmo, a quem confessei, no entanto, o embaraço em que me
colocava uma falta de ensaio para ir ao Paço da Ajuda fazer tal pedido de
formalidade protocolar. A esta minha observação logo o Telmo sugeriu com a sua
costumada desenvoltura:
- Porque não vais ter com Ele ao camarote, logo no
final do acto?
De começo renitente a pôr em prática tal alvitre,
vim afinal a aceitá-lo perante a insistência do Telmo e, no final do 2º acto
dos Namorados, vá de galgar ao camarote real e corajosamente bater à porta, que
me foi franqueada pelo oficial às ordens. Depois de apresentar a El-Rei as
desculpas que se impunham de me permitir aparecer-lhe assim vestido e
caracterizado para entrar em cena, e ao convite que me atrevia a fazer-lhe, em
lugar tão impróprio, para que honrasse com a sua presença a minha récita,
El-Rei, acedendo prontamente ao meu pedido, rematou com esta graciosa frase:
- Fizeste muito bem. Não faltarei. E, assim não
indo à Ajuda, metes na algibeira as três corõas da tipóia, o que não deixa de
ser também uma pequena “ajuda”…
Poucos dias depois de haver realizado a minha
récita fui, como me cumpria, até à cidadela de Cascais para agradecer
pessoalmente a El-Rei a honra que me concedera a ter assistido a esse espectáculo,
como me havia prometido.
Quando entro no grande terreiro da parada deparo
com El-Rei que, apoiado ao varandim duma janela, repousava o olhar na imensa
toalha de água do Oceano em plena calmaria, pondo-a talvez em contraste com a
tumultuosa e sórdida agitação dos conluios políticos que Ele tanto desprezava e
se empenhava em aniquilar.
El-Rei então dá por mim e, notando talvez o meu
enleio para entrar no palácio, convida-me num gesto afectuoso para que suba, o
que faço prontamente. No entanto, ao chegar ao topo da escadaria, deparo com o Conde
de Ficalho que, numa expressão de estranheza, inquere:
- Que deseja?
- Falar a El-Rei, que tendo-me visto me convidou a
subir – respondo. Num movimento de indignação o sr. Conde ainda me pergunta:
- Mas afinal que é feito do protocolo?
E eu fazendo-me desentendido, acrescento:
- É sujeito que não conheço. – Momentos depois de
entrar, a convite de El-Rei, num gabinete contíguo ao seu atelier, começo por
Lhe contar o episódio que acabara de dar-se. El-Rei então sorrindo-se
discretamente, dignou-se aceitar os agradecimentos que me levaram á sua
presença e, antes de dar por finda a honrosa audiência que amavelmente me
concedera, fez-me entrar no seu atelier, onde me entregou gentilmente um
desenho à pena, de sua autoria e por ele assinado, e com esta legenda: “Couraçado
de Esquadra – 1883 – Carlos” – acompanhando a oferta das seguintes palavras:
- E agora aqui tens esta lembrança pela noite da
tua récita.
No momento porém em que transpunha a porta de saída,
El-Rei detém-me inopinadamente para me dizer:
- Olha lá, se vires por aí o protocolo, dá-lhe
saudades minhas!”
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