"Era um dia de Primavera. Fui encontrá-la, vestida de vermelho, na sua casa da Rua de S. Bento, numa sala quadrada cheia de flores ("tenho esta loucura, mesmo que tenha a casa até ao tecto com flores eu trago sempre mais..."), e as paredes revestidas de azulejos azuis e brancos. Mas porventura só aquelas paredes, se falassem, seriam capazes de nos contar a história tão singular desta mulher e explicar-nos o seu destino. Ela não é. Traz a vida na pele e o fado no peito e isso chega-lhe, as palavras são só para cantar. Por isso este meu encontro com Amália Rodrigues - como todos os outros que tive com ela - é sobretudo uma atmosfera. E o sussurro de um estado de alma que escorre, magoado e fatalista, por entre o que ela me ia dizendo. O coração bate-lhe de um modo estranho e sofrido, ela nem pode bem explicar: "Sou toda assim..."
Nasceu com as cerejas, só sabe que deve ter sido em Julho e como gostava de as comer e de se festejar, decidiu para si que nasceu no primeiro dia do mês. Mas nos seus papéis de identidade alguém escreveu "23 de Julho" e assim Amália celebra o seu aniversário duas vezes no mesmo ano. Sempre que estou com ela, o que retenho antes do mais, porventura mais ainda do que o timbre único da sua voz, é esta impressão, limpidíssima, da qualidade também única de que ela é feita. Durante longas décadas o mundo esteve a seus pés, foi abençoada pelos deuses do génio e da fortuna, os homens perderam-se por ela, provocou a paixão e semeou o desassossego. Mas ao fim de todas as glórias, nada a maculou, ninguém a corrompeu. Nenhum sucesso lhe perturbou jamais o instinto de ser como era ("eu não sou culta, tenho de dar a volta às coisas...") ou lhe impediu que seguisse o veio da sua prodigiosa intuição ("é tudo o que eu tenho... Sou como os animais, nunca ninguém me ensinou nada..."). Por isso é intacta hoje, a mesma rapariga que aos dezasseis anos vendia limões nas ruas de Lisboa. A simplicidade, a inocência, a candura desses tempos são as mesmas que hoje lhe ditam os passos e os gestos ("os meus amigos dizem que eu peço desculpa de ter sucesso, tenho um pavor, é verdade...").
Amália atravessou a legenda e sobreviveu ao seu próprio mito. "O fado? O fado é uma música que dá para o meu feitio cantar..."
Pausa:
"Não sei dizer o que é o fado, está tão preso a mim, levei a vida a cantar. É uma música que dá para o meu feitio cantar... É o destino, é a minha vida, são as coisas que trago comigo, são muitos sentimentos á mistura. O fado é mistério, ninguém pode explicar o que ele é..."
Começou a cantar na Severa, depois passou por outras casas de fado. A música de Frederico Valério ("Portugal inteiro cantava os fados que ele fez para mim!"), de Alberto Janes ("tão português e tão internacional!"), abriram-lhe as portas do mundo. A primeira foi o célebre Olympia, em Paris, onde o empresário Bruno Coquatrix lhe disse: "Se você cá ficar, farei de si uma vedeta internacional..." Amália nem o ouviu: "eu partira de Lisboa com um vestido preto, uma viola e uma guitarra... Os jornais começaram a dizer coisas extraordinárias de mim, cá nunca disseram nada igual... Mas não sabia viver longe daqui, sou tão portuguesa..." A seguir começou a cantar "no mundo todo". As tournées ("sou uma cigana, adorava andar de um lado para o outro!") seguiram-se umas às outras, numa estonteante sobreposição de imagens e aplausos: América, Japão, Moscovo, América Latina, a Europa toda, África.
"A cantar eu passava de 48 para 190 pulsações! Mas nunca pensei cantar assim, cantarolava em casa, nunca pensei vir cantar como Amália Rodrigues!"
Houve também o cinema (Os Amantes do Tejo; O Fado; As Ilhas Encantadas), o teatro, a televisão: "Ah, não foi nada a mesma coisa do que cantar, era muito tímida... Eu dizia que gostava mas no fim tinha mais medo que vontade. Apesar de tudo preferi o teatro, sou um bicho de público... E fiz a A Sapateira Prodigiosa, do Lorca, na televisão, só para me poder mascarar de espanhola!"
E depois, um dia, apareceu-lhe o Alain Oulmain. O encontro com o compositor, nos anos sessenta, "deu uma reviravolta em tudo", fez "nascer um outro reportório" e porventura uma "nova" Amália.
"Ah, o Alain foi o milagre. Eu andava à espera que me aparecesse uma pessoa assim, queria expandir-me, ele foi o único que me fez esse tipo de música. Há nela uma tristeza e uma profundidade que me tocam muito e a música dele ajudou-me a cantar outros poetas." Os outros poetas chamavam-se Camões ("o maior poeta português, mas também o maior fadista"), Pedro Homem de Melo, David Mourão-Ferreira, Alexandre O'Neill:
"O O'Neill escreveu-me um grande fado, A Gaivota, a música dá-me para voar como as gaivotas, umas vezes alto, outras vezes, baixo..."
E que outras músicas?
"Aprecio muito a música popular do Brasil, do México, da América Latina... Dá-me jeito cantar música latina, uma ranchera mexicana, um samba, estou à vontade... Mas para ouvir prefiro Mahler, uma música parecida com a minha... Ou Bach, que é de chorar e por isso gosto..."
O sol entardece sobre os azulejos azuis e brancos, chegam mais flores. Amália ajeita as pregas do vestido vermelho:
"A minha oração todos os dias é dizer Deus que tudo isto foi um milagre... Sim, rezo muito..."
Pausa:
"A minha vida é mesmo uma estranha forma de vida. Aconteceu-me o destino de fazer de mim o que sou."
Entrevista de Maria João Avillez a Amália Rodrigues - Revista Atlantis
1 comentário:
A entrevista inspirou um livro recente! Temos um País de plagiadores.
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