Auto Novo, e Curioso da Forneira de Aljubarrota, em que se contem a vida, e façanhas desta valerosa Matrona – Composto por Diogo da Costa, Lisboa, Na Officina dos Herd. de António Pedrozo Galram, MDCCXLIII (1743)
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Na famosa, e sempre leal Cidade de Faro, a quem o Oceano (parecendo-lhe, que nisto lhe dá perro) lhe morde as prayas com as argentadas prezas de suas ondas, porem vendo, que lhe não póde meter dente se confessa corrido de lhe ter beijado-o pe quando lhe pretendia morder a planta: he esta famosa Cidade Metropoli do Algarve, em cujo Reyno ainda que seus moradores passão muito, com tudo sempre dão figas a muitas terras de Portugal. Esta foy a pátria da famosa Brites de Almeida, ou por outro nome, da valerosa Forneira de Aljubarrota (ainda que os desta Villa querem seja sua patrícia.)
Nasceo de pays humildes, e pobres, porém com tão altos pensamentos, que lhe parecia, que todo o Mundo era seu, pois nem sempre o inferior nascimento he índice da cobardia. Vivião seus pobres pays em huma humilde casa, ou taverna, onde ganhavão o sustento, repartindo pelo Povo o trabalhoso suor das vinhas, ou os saborosos dons do fecundo Baco: neste exercício se foy creando, e crescendo esta varonil matrona, sobindo-lhe taes fumos à cabeça, que apenas chegou a uso da razão, se foy mostrando de tal forma desarrezoada, que por qualquer cousa partia huma cabeça, o que fez muitas vezes, cuindando-se pouco no seu castigo, pelo sexo, e pouca idade, como se o corpo, que encerra grande maldade, não podesse receber igual supplicio.
Logo desde a meninice começou a ostentar animo varonil, porque em lugar de applicar ao lado da roca, somente procurava cingir a espada, e quando outras moças da sua idade a convidavão para brincarem com as suas bonecas, […] só se inclinava a formar pendências, a fingir desafios, e a jugar murros, e bofetadas, fazendo-se tão temida não só das raparigas, mas ainda dos rapazes, que em ella apparecendo, todos fogião. Chegando com estes intróitos à idade de vinte e seis annos, ficou orfãa de pay, e mãy, e vendo-se sem quem lhe podesse atalhar seu fervoroso animo, começou mais livremente a exercer suas travessuras; pois ficando-lhe algum dinheiro de seus pays, o começou a gastar com Mestres de esgrima, e em comprar boas espadas.
Nestes, e outros taes exercícios, gastou algum tempo fazendo vários crimes leves, que não os fazia mayores, porque lhe não davão motivo a isso, pelo muito, que todos a temião; mas vendo, que algum dinheiro, que de seus pays tinha herdado, estava quasi gasto, e que lhe era forçoso buscar modo de ganhar a vida, se foy arrendar huma fazenda junto a Loulé, pois não tinha génio para exercitar occupações mulheris, mas também nisso presistio pouco tempo; e foy a razão, que havia alguns mezes, tinha chegado a Faro hum soldado natural do Além-Tejo, homem valeroso, e de grandes forças, o qual ouvindo as acções de Brites de Almeida, e presenciando algumas, se abrazou em hum honesto amor de a solicitar para esposa; digo honesto amor; porque não o tinha rendido a quererlhe a fermosura, pois nella não havia motivos para ser querida pela presença, por quanto era da estatura do mais alto homem, magra mas corpulenta, a cor do resto pallida, o semblante triste e feyo, o cabello crespo, os olhos pequenos, o nariz e a boca grande, tinha seis dedos em cada mão, que logo parece, que a natureza por lisongear o seu valor quis dar com o augmento dos dedos mais motivos ao esforço de suas mãos.
Sendo este o seu retrato, se deve inferir, que somente rendeo a este infeliz amante, o vela no valor tão parecida ao seu génio, pois he a semelhança causa de amor, que podia attender, que essa mesma valentia, que nella admirava, era mayor motivo para se aborrecer, pois as mulheres somente se devem procurar prudentes, e virtuosas; porém o nosso soldado não admittio estas máximas, porque quem ama, julga prendas, o que são defeitos. Em fim sabendo, que a sua querida se tinha mudado para Loulé, se poz a caminho, e chegou em hum dia à tarde à fazenda a tempo, que ella estava assistindo à cava das vinhas, e castigando hum moço seu por certo descuido; e pedindolhe o cançado amante, que o attendesse menos irada, e mais compassiva, lhe manifestou o intento a que vinha. Estranhou ella o estylo da proposta, tanto porque no forte do seu peito nunca tinhão penetrado de amor as settas, como porque julgava o altivo de seu valor, que nenhum homem era capaz de sogeitarlhe o alvedrio. Por hum breve espaço esteve imaginando, se lhe daria a morte em resposta de seu atrevimento, e socegada por hum pouco, lhe respondeo, qual outra cruel Atalanta, que se queria dar a partido, mas de tal modo, que se elle a vencesse com a espada na mão, se rendaria ella à sua vontade; e quando elle ficasse vencido, perderia a vida aos fios da sua espada em castigo do seu atrevimento. Aceitou a condição o amante Hypomenes, porque quem ama a todo o partido se offerece; e ainda julgava pouco o arriscar a vida por merecela. E fiados cada qual no seu esforço (ainda que o infeliz amante tinha dous contrários, pois pelejava contra a sua inimiga, e contra o seu mesmo amor) meterão mão às espadas, e se começarão a atirar cruéis golpes; mas como na contenda só procurava o amante soldado vencer, e não maltratar, (pois mal offenderia, a quem amava) em breve tempo se se sentio passado pelo peito com a espada da sua cruel competidora, e cahindo em terra perdeo a vida.
Como isto succedeo à vista dos cavadores, que com alaridos tudo atroavão, lhe foy preciso retirarse pondo-se a caminho para Faro, e tendo já caminhado pouco mais de ??? léguas, olhou para traz, e vio, que vinhão em seu seguimento mais de vinte homens armados; porém quando chegarão junto della, era a tempo, que já estava cerrada a noite, que muito escura, e tempestuosa, e valendo-se de hum bosque de figueiral, entrou por elle, e ainda que a justiça a seguio, não lhe foy possível achalla por causa da cerração da noite, e obscuridade do bosque; e assim caminhando todo a noite chegou a Faro pela manhãa, e achando na praya hum batel com vela, e leme, se meteo dentro, e entregou ao mar, confiada em alguma experiencia, que tinha, com tenção de passar o Guadiana, porém começando a cahirlhe hum vento leste, a foy desviando tanto ao largo da terra, que a poucas horas a perdeo de vista.
Todo aquelle dia passou naufragando entre as ondas, sem ver mais, do que mar, e Ceo, e deitando a vela abaixo se deixou ir para onde a agua, e o vento a quizessem levar, e pondo-se a roer nas unhas (que he o costume de Poetas, e afflictos) começou a imaginarse visinha ao ultimo fim da sua vida, por quanto ainda a escapar de ter profundo monumento nas salgadas ondas, se considerava brevemente morto cadáver na tumba de hum bater, pois passavão vinte e quatro horas, que não comia, nem bebia; chegada a noite a passou nestasm e outras considerações, arrependida já dos seus desacertos, sendo o seu mayor pezar o chegarlhe tão tarde o arrependimento.
Chegado o seguinte dia mais socegado de vento, e mais tranquillo o mar, ainda que mais augmentava a interior tormenta de suas afflicçoens, esteve desesperada quasi deitando-se ao mar por não ter mais dilatada morte; e levantando os olhos, vio, que huma embarcação à vela cortava as aguas, e tornando a levantar a vela ao batel para melhor ser vista (o que muito lhe custou pela fraqueza em que estava) a poucas horas vio junto de si huma setia de Mouros: bem razão tinha de estimar o encontro, pois ainda que inimigos, lhe trazião com o cativeiro o quasi perdido alento (que há occasioes tão terríveis, que se sestejão as mesmas desgraças.) Porém levada do seu génio, e valor pegou na espada, e determinou vender a vida a troco do inimigo sangue, e chegados os Mouros, começou a porse em defeza, ameaçando com a espada ao que intentasse cativala. Muito admirados estavão os inimigos, vendo que huma só mulher se oppunha a mais de duzentos homens, e recebendo nas rodelas os golpes, que lhes atirava, saltarão dentro no batel, e a cativarão, não sem lhes custar algum sangue, ficando muito admirados do seu valor, e mais sabendo, que havia quarenta e oito horas, que não comia, nem bebia. Tratarão logo de alimentar, e se puzerão a caminho para Argel, não porque fossem satisfeitos com a preza, mas porque estavão já faltos de mantimentos.
Com a demora de quatro dias aportarão em Argel, e posta a preza em lanço, como he costume, foy comprada por hum Turco rico, e poderoso, em cujo palácio achou mais dous cativos Portuguezes, que de algum a lívio lhe sevirão na sua desgraça (porque o ter companheiros nas penas senão he remédio, he ao menos consolação). Foy logo mandada trabalhar no exercício da cosinha entre as mais servas de Hamet (que assim se chamava o Turco) cousa, que ella muito sentio por não ser costumada a exercicios feminis; e posto que pedio ao Turco, que a mandasse cavar, ou fazer outros exercícios mais trabalhosos, não forão admittidos seus rogos, e assim neste tormento esteve mais de hum anno, até que desesperada buscou occasião de fallar com os dous cativos, e lhes intimou como não solicitavão a sua liberdade. Ao que elles responderão, que era impossível não sendo com resgate. Replicou ella, que se tinhão valor lhes promettia verem-se livres brevemente: e ajustada a seguinte noite para o que intentava, se forão ambos pêra o lugar onde ella mandou, que esperassem.
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