Quando veio a lume, em 1997, causou incómodo. Talvez surdo, mas muito embaraçoso. A forma como nos oferecia Salazar - próximo, quase íntimo, o que significa também, inevitavelmente, humano, terno - chocava com a imagem canónica do duro, distanto, desumano ditador que durante quase quatro décadas comandou os destinos de Portugal.
Porque quebrava um tabu, o livro não passou despercebido e foi conquistando leitores, ano após ano. Mas, porque, por via de regra, a incorrecção política se paga caro - e esta, para mais, nos chegava de um antifascista e democrata reconhecido -, ficou muito aquém do reconhecimento público que merecia. Ou, talvez, porque há mesmo um tempo que é preciso deixar passar antes de nos sentirmos preparados para olharmos certos episódios da vida colectiva. Sobretudo aqueles que nos estão mais próximos e de que menos nos orgulhamos, porque nos confrontam com as nossas tibiezas, a nossa cobardia. Porque cruamente nos devolvem uma imagem do país e dos portugueses na qual, afinal, nos reconhecemos a nós também.
Nove anos passados, a editora Casa das Letras/Editorial Notícias relança "Máscaras de Salazar", de Fernando Dacosta. Numa "versão revista e aumentada", escreve-se na capa, que promete a "revelação de factos desconhecidos", enumerados na contracapa: Salazar não caiu da cadeira; conservou escondidas duas cápsulas de cianeto fornecidas por Hitler; a PIDE matou Delgado sem o seu conhecimento; foi ele que sugeriu a fuga de Cunhal da prisão de Caxias; e a Santa Sé chegou a considerá-lo a "encarnação viva do demónio".
Mesmo quando capa e contracapa nos soam a publicidade demagógica e algo enganosa - as cápsulas, a terem existido, não foram fornecidas por Hitler, mas trazidas de Berlim por um diplomata, escreve-se no texto; a sugestão da fuga de Cunhal terá sido feita à PIDE, não a este, como parece sugerir-se; e onde é que estão os "documentos inéditos" que provem algumas destas novidades? -, trata-se de factos ou hipóteses de factos suficientes para aguçar a curiosidade do mais indiferente dos leitores.
(Re)Lemos o livro. Lá estão os actores conhecidos do regime do Estado Novo (oposição incluída, ainda que esta mais efemeramente, quase como ruído de fundo). E, entre todos, nos lugares cimeiros, Salazar e Maria de Jesus.
O Salazar frio e implacável na condução dos negócios do Estado e a fiel D. Maria, "a verdadeira, apesar de oculta, primeira dama do Estado Novo", actuando na zona mais obscura mas não menos influente dos bastidores em que, tantas vezes, se jogam, comprometem, criam destinos. Mas também e sobretudo as múltiplas máscaras que Salazar usava nas relações com o exterior e no pequeno mundo, em que mais do que ele, D. Maria, matreira, imperava.
Um mundo rural, aldeia implantada no centro de Lisboa, onde "chegou a haver 500 galinhas (existiam chocadeiras a petróleo para os ovos)"; para onde "amigos de Viseu, Santa Comba, Elvas e Braga" enviavam, "todas as semanas, cestos recheados de carnes, fumeiros, enchidos, hortaliças, pão-de-ló, broa, queijo, vinho, azeite"; e na qual "chegou a haver 13 pessoas hospedadas, a comer, a vestir, a calçar", a quem o camponês António sustentava, tal pai adoptivo (protector da desventura ou/e pedófilo?) de duas "afilhadas" e de mais uma quantidade de "miúdas", a uma das quais, encarregada de lhe preparar a água para o banho, uma vez pelo menos (contado pela própria) "apareceu de roupa interior", gabando-lhe o "muito jeito".
Um secreto, misterioso, contraditório mundo - Salazar frequentador de astrólogos e videntes; Salazar anticlerical, "mais crente na Providência do que em Deus"; Salazar "ao mesmo tempo sensível e cínico, casto e pervertido, (...) medíocre e genial, íntegro e desgraçado" - na intimidade de cujos regentes o jovem repórter Fernando Dacosta, então a trabalhar na agência Europa-Press, da Opus Dei, foi admitido, em meados da década de 60. Primeiro por D. Maria; depois por Salazar, quando este o soube oriundo de Segões, aldeia próxima de Viseu, e com adolescência passada na Folgosa, junto à Régua, zona de que "gostava muito".
Para lá da escrita - que lhe sai das mãos cinzeladas, como raros cronistas se preocupam em fazer, entre nós -, Fernando Dacosta confirma-se, nesta nova versão do livro, como senhor de excepcional capacidade de encenação. Que aplica, acima de tudo, na cerzidura de anódinos episódios do quotidiano aos quais dá alma e profundo sentido vivencial.
Além dos textos inéditos, com as tais revelações para encher o olho, o autor foi buscar pedaços do seu "Nascido no Estado Novo", que está a ser actualizado e será republicado "em breve".
De tudo isto - e, quem sabe, também, das lentes do tempo através das quais agora lemos a obra? - resulta uma versão "revista e aumentada". Na verdade, aos nossos olhos, muitíssimo melhorada. Tornando-a de leitura obrigatória para quem, despido de verdades ("das grandes primeiro que das pequenas/das tuas antes que de quaisquer outras" como aconselhava Cesariny), queira lançar novo olhar sobre os anos, cruciais anos para sucessivas gerações de portugueses, que vão do final da I República até 1970, data da morte de António de Oliveira Salazar.
Máscaras de Salazar
Autor - Fernando Dacosta
Editor - Casa das Letras/Editorial Notícias, 10ª Edição
371 págs., €18,50"
INFORMAÇÃO
Fernando Dacosta irá apresentar o livro - MÁSCARAS DE SALAZAR - através de um debate a realizar-se na próxima terça-feira, dia 5 de Dezembro de 2006, na Livraria Bertrand do Picoas Plaza, pelas 6 horas da tarde, com a presença do próprio e de outros convidados.
2 comentários:
Meu caro Dany: nunca pensei que o nosso amigo ousasse publicar as suas especulações alucinatórias sobre o falecido...as cápsulas de cianteo actuam em segundos e não levam mais de um ano a fazer efeito como foi o caso. Não sendo um documento histórico, nem um romance de ficção, não sei em que categoria coloque a dita prosa. Uma novela? Ajude-me, se puder, a qualificar esta obra literária.
Um abraço
zé maria
Ora aí está um livro que faz parte da lista das prendas que eu gostaria que o Pai Natal me oferecesse.... vamos lá ver se tenho sorte.
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